Quando um livro fala consigo próprio
A 3ª edição de Hoje sinto-me… de Madalena Moniz (Orfeu Negro) trouxe algumas mudanças. Sete anos depois do lançamento deste alfabeto de emoções, há novas ilustrações e novas palavras que resultam de adaptações que a autora teve de fazer em edições estrangeiras. É, em suma, outro livro.
Mais mundo, mais afeto
Não é comum que as reedições de livros, nomeadamente de álbuns ilustrados, se apresentem com alterações de monta. Uma capa diferente, um formato maior ou menor, um final diferente, um pormenor no texto ou na ilustração… Um Livro para todos os dias, do Planeta Tangerina, é disso exemplo.
No caso de Hoje sinto-me… acontece uma leitura renovada que se lança em diálogo com o que já não está ou mudou de lugar, para quem conhece a 1ª edição.
Das vinte e seis entradas, correspondentes ao total de letras do alfabeto, há dez ilustrações novas, seis palavras novas, duas ilustrações que mudaram de sítio e correspondem a palavras diferentes e uma ilustração que tem um pormenor distinto.
Esta nova configuração altera algumas percepções. Logo no início, para a letra A a palavra escolhida foi e mantém-se “audaz”. Na 1ª edição esta emoção fazia-se acompanhar pela imagem do protagonista a escalar uma parede de pedra. Nesta que agora se apresenta o quadro representa o protagonista a beijar o rosto de uma menina. Para além da descodificação do significado da palavra se tornar mais evidente (ou talvez não), a situação é mais forte que a oferecida na 1ª edição. É facilmente reconhecível por mais leitores, logo abre o livro estabelecendo empatia. Para além disso contraria um universo mais individual, eventualmente solitário, do menino que só aparece acompanhado uma vez na 1ª edição, sentado com uma menina numa prancha sobre a água, ilustrando a palavra Genuíno.
A editora da Orfeu Negro, Carla Oliveira, explica como se chegou a esta alteração: “Os [editores] americanos pediram-nos especificamente para acrescentar mais imagens com a menina e depois que lhe escurecêssemos o cabelo. (Esta parte já não pudemos cumprir à risca, o cabelo muito escuro não resultava). A 3ª edição ganha “mais menina” e começa até por aí, com uma imagem mais afectiva e amorosa para a mesma palavra: AUDAZ.” Trata-se de outra leitura possível: valorizam-se os afetos sobre a coragem física. Efetivamente, a parelha só aparece junta em dois momentos, mas em ambos manifestando carinho: no que abre o alfabeto e na letra O, que retrata o optimismo com um extenso quadro negro preenchido com diversos jogos do galo e os dois amigos de costas, abraçados, a jogar. A ilustração que acompanhava a palavra genuíno na 1ª edição não consta desta nova versão. Ainda, no âmbito do afeto, surge o abraço entre um adulto e o menino, que tem um sorriso nos lábios e os olhos fechados, parecendo entregar-se ao conforto e ao carinho, como a palavra QUERIDO pode traduzir.
Segundo a editora, esta é uma edição mais madura: “Perde uma certa inocência, no sentido em que o primeiro álbum é também o primeiro álbum construído pela Madalena enquanto autora, mas ganha em força de imagem. Torna-se mais impactante e talvez menos delicada, se quisermos comparar com a primeira. Na realidade, no caso deste Alfabeto de emoções, seria muito interessante fazer uma análise comparativa de todas as edições, uma vez que são todas diferentes (as capas também divergem). Na edição norte-americana percebemos inclusivamente que, para além da representatividade, a editora apostou em sentimentos mais positivos.”
Efetivamente, as propostas que agora ganham unidade neste novo volume trazem mais cor, mais quotidiano, menos força física e menos melancolia. Agora há rabugice no duche e um desejo por fruta e legumes, há um sentimento de gratidão por ser amado, e está-se sozinho numa sala de cinema e não numa casa numa árvore. Perde-se o salvamento do gato e ganha-se num herói fantasiado, que qualquer um pode ser. Perde-se a revolta pelo papagaio preso na árvore e a vulnerabilidade. Há mais emoções associadas às experiências do dia a dia e, ainda que indiretamente, relacionadas com as relações com os outros. Ao que acresce uma dose de imaginação e fantasia cujo paradigma é a palavra mágico e a ilustração de fundo negro e um pontilhado branco onde se identifica a silhueta do menino. É esta uma das ilustrações preferidas de Carla Oliveira. Madalena Moniz recorda-a de outra forma: “Lembro-me que não foi fácil chegar ao resultado da ilustração da palavra Mágico (da nossa 3ª edição), que foi originalmente feita para a edição inglesa para a palavra Brilliant.”
Como se chega aqui
O desafio de alterar palavras e serem necessárias novas ilustrações chegou com a venda dos direitos de edição para outros países. Tendo em conta que se trata de um alfabeto, basta que a tradução da palavra não encaixe na letra para ser preciso encontrar outra. É sempre um puzzle entre as palavras, as ilustrações e a própria coerência interna do álbum. “Foi sempre um trabalho conjunto com as editoras estrangeiras, pois na Orfeu Negro avaliávamos as propostas e tentávamos orientar também, sugerindo outras combinações. Mesmo em línguas europeias que poderíamos não conhecer, esforçávamo-nos por ir procurar palavras, conceitos, etc. Actualmente, a venda dos direitos internacionais é feita pela Birds of a Feather Agency e a edição que vai sair em italiano, pela Orecchio Acerbo, foi muito discutida com a Inês Felisberto e a Patrícia Guerreiro Nunes. Elas tiveram um papel preponderante no quebra-cabeças da reorganização do livro e trocámos mais emails do que se possa imaginar, pois a Orecchio também ia contribuindo com sugestões e opiniões. Fiquei muito contente com o resultado do brainstorming e agora aguardamos a edição em papel!”
Hoje sinto-me… começou por ser editado em França em 2016, mas neste momento conta com duas edições em Espanha, uma castelhana e outra catalã, no Chile, no México, na Argentina, no Brasil, na Alemanha, na Holanda, na China, na República da Coreia e nos E.U.A. Foi aliás para esta edição que muitas das novas ilustrações nasceram, como recorda Madalena Moniz: “A adaptação para a nova língua é um trabalho feito principalmente pela editora estrangeira. Cada editora faz o seu “puzzle”. Depois é passado para nós para aprovação e em algumas participamos um pouco mais que noutras.
A edição estrangeira que deu mais trabalho foi, de longe, a de língua inglesa, para a Abrams (editora americana), para a qual fiz 11 ilustrações novas. Por um lado foi uma das primeiras edições estrangeiras, por isso ainda não tínhamos nenhuma ilustração nova, por outro lado penso que a editora foi particularmente exigente na sua edição. Deu trabalho mas resultou numa boa quantidade de ilustrações a mais, que ajudaram muito nas edições posteriores.”
Carla Oliveira acrescenta: “Existem 14 ilustrações extra do livro. 11 delas foram pensadas para a edição da Abrams que foi a terceira edição estrangeira do livro (2017).
A edição francesa não precisou de novas ilustrações, apenas de novas letras (como o B, E, por exemplo). A edição da Pepa Montana, em Espanha, obrigou a nova ilustração devido à letra Ñ. Em Espanha, temos o ‘ÑAM’! No México, ficou ‘Ñoño’ (Tonto).
Muitas das edições (alemã, holandesa, italiana) puderam já fazer a sua escolha, adaptando o total das imagens aos sentimentos, que são quase sempre diferentes nas diferentes línguas. Depois, a Madalena tem de desenhar novas letras.”
Com tanto material era possível e tentador mexer na versão original do livro. Madalena recorda que “quando chegou a altura de fazer a 3ª edição do Hoje Sinto-me, tínhamos 14 ilustrações extra, e achámos que fazia sentido aproveitar algumas para tornar o livro mais forte e com alguma novidade. Foi um trabalho de equipa, com a Carla Oliveira. Colocámos todas as ilustrações ao lado umas das outras, e foi como fazer um puzzle. Considerámos a força das imagens e das palavras (novas ou não), a respetiva ligação, e a ordem destes elementos no livro, levando em conta o significado, composição e cores.” Do ponto de vista editorial, faz todo o sentido apostar nesta mudança: “Não se trata tanto de aumentar vendas, mas de um gesto criativo. Sou alguém a favor da mudança, sobretudo quando esta traz coisas novas e enriquece.” Na verdade, a co-existência das duas edições distintas de Hoje sinto-me… provoca uma experiência de leitura singular entre o que se reconhece e o que se descobre, o que se espera voltar a sentir e o que inesperadamente se sente. Um pouco como reler um livro passado muito tempo mas com o acréscimo de o próprio livro se ter lido a si mesmo.