Elogio da memória, legado da palavra escrita
António Torrado partiu a 11 de junho. Aos 81 anos, era um decano da literatura infantojuvenil, um dos escritores mais importantes e mais lidos em escolas, bibliotecas e em família. Viu e participou em várias mudanças no panorama da escrita e da edição, bem como na educação. Acompanhou gerações de novos escritores e ilustradores. Escreveu dezenas de livros, entre contos, poesia, teatro, e recontos tradicionais. Foi jornalista, dramaturgo, argumentista, produtor, pedagogo e editor, para além de escritor. Foi lido e estudado pela academia especializada em literatura para a infância e juventude.
A 11 de junho e nos dias que se seguiram, disseminaram-se nas redes sociais múltiplos testemunhos, memórias, apontamentos sobre António Torrado. A sua generosidade, assim como o dom da palavra pontilhado por um humor desassombrado e acutilante foram consensuais e constantes. Mas, igualmente, a memória do texto escrito. Sobre a sua vida, o seu papel dinâmico na cultura e na literatura, os temas e valores que levou sempre para o papel (como a liberdade ou o respeito pela diferença), alguns dos quais só recentemente reivindicados, muito se escreveu ao longo dos anos, muito pelos melhores, como José António Gomes, Leonor Riscado, Sara Reis da Silva, Ana Margarida Ramos.
Destas vozes que se ergueram em homenagem à sua morte, o que sobrevem é sobretudo um vasto alcance democrático. A obra de António Torrado paira na memória de muitos, maiores e menores, leitores ávidos ou intermitentes, com muito ou pouco acesso ao livro. Não há quem com as suas palavras escritas não se tenha cruzado, nem que fosse com um excerto algures num manual escolar, um conto ouvido na Biblioteca, uma peça de teatro ou até um site, História do Dia, que o escritor alimentou diariamente entre 2003 e 2004 com contos inéditos, muito antes de os podcasts, os videos e as redes sociais fazerem parte do nosso quotidiano.
Como forma de assinalar o legado de António Torrado, a Blimunda pediu a sete pessoas, de sete áreas relacionadas com o livro e a leitura, que nos dessem um testemunho sobre o autor e uma obra que, de acordo com a sua profissão ou memória leitora as tenha marcado.
José António Gomes,
professor universitário, especialista em Literatura Infantil e Juvenil, escritor
O Elefante Não Entra na Jogada – um livro para muito riso
Um dos aspectos que sempre admirei num escritor é o poder que os seus textos tenham de fazer o leitor rir – falo do leitor que sou, bem entendido. Isso, em Portugal, acontece-me com pouquíssimos: Camilo (Eça um pouco menos), Aquilino, Mário de Carvalho, Dinis Machado… e António Torrado.
Em vários dos seus livros me aconteceu. Há porém um que integrei amiúde nas minhas aulas de Literatura para a Infância, em especial nos cursos mais longos, de 50 a 60 horas, e que costumo ler em voz alta aos estudantes, graças ao “grão de fala” da sofisticada escrita. E é verdade: bem lido, o texto consegue arrancar risos. Porque, convenhamos, além de mestre na arte de contar, o autor é mestre nos vários tipos de cómico. Um deles, ao alcance de poucos, é o cómico de linguagem. Esse mesmo que não existe nem nos livros só de imagens, nem na maioria dos álbuns narrativos de escasso texto, mas que marca presença na grande literatura para crianças e jovens: a que sabe lidar com a Palavra escrita, trabalhando a linguagem literária, repito, escrita (perdoe-se a aparente redundância, mas, pelo que vou lendo por aí, não é tão redundante assim o que acabo de dizer).
Uma dessas obras-primas de humor de António Torrado, o tal livro que, a par doutros, integrei nos meus cursos é O Elefante Não Entra na Jogada (ASA, 1985, ilustrações de Zé Paulo). Roçando o surreal, centrada no universo futebolístico, a narrativa apresenta um olhar satírico e crítico sobre o “mundo da bola” com um inventivo e irresistível confronto entre animais ditos racionais e outros ditos irracionais, em que o bom senso e equilíbrio dos segundos superam claramente a insensatez e histerismo dos primeiros, num texto que acaba por aflorar também a questão ambiental e a tensão Natureza/Cultura.
Modalidade desportiva de assinalados pergaminhos, o futebol é endeusado neste país e até respeitáveis escritores contribuem, nos seus livros infanto-juvenis, para tal mitificação. O que António Torrado faz em O Elefante Não Entra na Jogada é desendeusar o futebol, dar a ver o que nele existe de alienante, de irracional e de gerador de violência entre os humanos. Para tal, conta os hilariantes preparativos para um jogo entre duas equipas rivais, mais ou menos de bairro, cujas direcções resolvem, à última hora, reforçar os respectivos plantéis com animais do zoo, cada qual o mais promissor em termos performativos. Não menos hilariante é o jogo, pois, ao contrário do esperado por adeptos e equipas técnicas, os animais dedicam-se a pastar tranquilamente o relvado do estádio e a passear de um lado para o outro, enquanto, nas bancadas, os adeptos – em lances de irresistível cómico – se entregam a uma cena de pancadaria das antigas.
Como escrevi noutro local, deveria ser leitura obrigatória para todo o aspirante a membro de claque de futebol. Desse-se caso, evidentemente, de o candidato saber ler ou escrever…
Abençoado António Torrado, que tanta graça tinha como ser humano, e que tanta graça tem nos maravilhosos livros que nos deixou!
António Mota,
escritor
O Veado Florido, um livro luminoso
Naquele tempo inicial em que eu que despertava para as histórias, digo assim, porque corria, se a memória não me atraiçoa, o ano de 1977, nesse tempo em que ia de Baião ao Porto para me demorar a ver livros nas livrarias e comprar um ou outro. Uma vez, numa das extraordinárias manhãs ou tardes em que a Ilse Losa me recebia em sua casa, no Porto, e me mostrava caminhos diversos, a Ilse perguntou-me se eu tinha lido O veado Florido, do seu amigo António Torrado. Corri a comprar o livro, que tinha ilustração de Leonor Praça e, depois de o ler e reler em minha casa e aos meus alunos que frequentavam os primeiros anos de escolaridade, descobri a importância de saber contar bem uma história, a importância de cerzir o texto com as palavras estritamente necessárias, as frases limpas, a importância da musicalidade e do humor. Aprendi a importância do ofício. E tornei-me seu leitor e seu amigo.
“A história que vou contar passou-se há muito e muito tempo, numa terra que muitos arados revolveram, muitos rios sulcaram, muitas árvores cobriram, muitas secas secaram. É uma história muito antiga, passada numa terra antiga” , assim começa O Veado Florido.
O livro, que estava na escola, ganhou asas e voou para casa de um leitor mais sedento. E compreende-se. A história tem dentro crocodilos voadores, leões emplumados, cavalos azuis, borboletas gigantes, serpentes luminosas, girafas listadas, cisnes transparentes e um veado com folhas luzidias e flores muito brancas nas hastes, mas só quando não estava aprisionado.
Hoje, tenho O Veado Florido, ilustrado por Manuela Bacelar.
Contei esta história ao António. Ele ficou calado, sorriu e perguntou-me se eu não teria inventado uma história com a sua história. Jurei que era mesmo verdade. Acho que acreditou.
André Letria
ilustrador e editor
O António fazia-me rir.
O António fazia-me rir. E pensar. Haverá melhores qualidades do que estas num amigo?
O António sorria muito quando conversava com amigos. Não era um sorriso aberto, fácil, era um sorriso contido, o sorriso de quem sabe que o que tem para dizer vai fazer rir.
Uma vez, fiz uma viagem de comboio com o António. Tínhamos acabado de participar num festival literário e Lisboa estava a mais de duas horas de distância. Connosco estava outro amigo e o António contou-nos histórias. Não as histórias dos livros, mas histórias com memórias de encontros com outros amigos, como se, ao recordá-los, os convidasse a viajar ao nosso lado.
Enquanto falava, o António fazia-nos rir. Depois adormeceu e deixou-nos a pensar. Na amizade, no valor da memória, mas também no que se sente quando um bom contador de histórias fica em silêncio.
Uma vez, ilustrei uma história do António. Era sobre um cão e um gato que não se davam bem. Os dois bichos tinham uma dona que lhes dizia «sejam amigos, sejam amigos». Nesta história, o António arranjou uma maneira de eles mudarem de pele. O cão passou a sentir-se gato e o gato passou a sentir-se cão; e ficaram amigos. Era uma história que fazia rir. E pensar. Na amizade (sempre na amizade) e na beleza de saber ouvir.
O António agora está em silêncio, mas eu continuo a rir-me das histórias que ele me contou. E vou pensando. Na amizade e na falta que ele nos faz.
Cristina Taquelim
Mediadora de Leitura
Conheci o António Torrado no fim dos anos oitenta, nas formações promovidas pelo Instituto de Apoio à Criança e no Centro de Arte Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian (duas escolas de mediação cultural e educação artística para muitos na minha geração. Tive o privilégio de o convocar muitas vezes, em nome da Biblioteca Largo que trago no coração. Sempre acudia ao chamado, andarilhando para Beja e acompanhando os trabalhos dia e noite. Os seus quarenta anos de vida literária foram celebrados em Beja, em vida, com muitos mediadores, num bonito ABRAÇO. Guardo no peito os encontros em Pombal, em Tábua, no Rio de Janeiro onde com um pedaço de giz lhe apresentei uma ousada reinvenção do Pato Patareco… rimos juntos. Eram horas sempre desejadas. As muitas horas de histórias ao telefone que durante anos fomos roubando ao correr dos dias, a disponibilidade de sempre me receber em sua casa, foram fazendo nascer uma amizade livre e generosa.
Dos milhares de páginas que escreveu, trago sempre comigo as que compõem o “pequeno formulário mágico da infância” que iluminou com editor e autor e ao qual permanentemente regresso neste meu desígnio de mercadora de coisa nenhuma. Também os seus contos e poesia. Encontro nos seus textos outros ecos – Andersen, Rodari, até mesmo Borges – mas a todos se sobrepõe a sua própria voz, a sua identidade de narrador hábil. O António sabia o lugar do jogo do nonsense, do humor fino em tudo o que escrevia. Na sua micro-ficção tudo fala e se espanta com as consternações da vida, com os desencontros, as pequenas grandes alegrias e tristezas com que vamos preparando o tempo que há-de vir. A cada texto lido continuo a escutar a sua voz.
Inês Vila
Chefe de Divisão das Bibliotecas Municipais do Porto
São muitos os livros, do António Torrado, que leio e muitos os que convido a ler, até porque sou tia, madrinha, amiga, bibliotecária, mediadora de leitura e leitora!
As suas histórias educam e divertem, instigando sempre, nos pequenos e nos grandes leitores a curiosidade e a vontade de ler uma próxima. Desde as belas e pequenas histórias “Da rua do contador para a rua do ouvidor” até ao divertido “Vem aí o Zé das Moscas”, passando pelos versos miudinhos do “Como Quem Diz”, é difícil escolher e recomendar um. A melhor forma de testemunhar o quanto apreciamos a sua escrita é aconselhar a leitura ou releitura de TODOS!
Ainda assim, a minha escolha recai na história/livro “O cão e o gato” (edição APCC, com ilustrações do André Letria). Esta foi e é, sem qualquer dúvida, a história do António Torrado que mais dei a conhecer aos pequenos e grandes leitores. Uma história divertida, ao jeito do Torrado, que explica com magia o valor da amizade, usando para tal, dois incorrigíveis inimigos – o cão e o gato!
Lurdes Caria,
Professora Bibliotecária no Agrupamento de Escolas Francisco Arruda
Vem aí o Zé das Moscas
Que Tem Muito Que Contar
O seu criado Pimpim e a Maria Rosa
Convidam os Sete Veados Barbudos
E o “5ºA”
A Tocar e a Dançar!
É com este trocadilho que a Biblioteca Escolar (BE) do Agrupamento de Escolas Francisco Arruda, motiva os alunos a lerem ou a ouvirem ler este livro do António Torrado!
Os alunos agarram imediatamente na obra, saltam de conto em conto, uns à procura da D. Rosa, outros dos Sete Veados… acabando normalmente todos no Toca que Toca, Dança Que Dança! Daqui já saíram pequenos “raps” acompanhados de belas coreografias!
Como coordenadora da BE sempre promovi muitas leituras deste grande autor, vizinho e amigo, pela sua capacidade de encantar miúdos e graúdos com as suas histórias. Veio diversas vezes aqui à Escola contar e encantar…e lembro-me especialmente de uma vez em que veio entregar os prémios referentes ao “concurso literário” realizado a partir “De Como se Faz Cor de Laranja”. Depois de mais de hora e meia de perguntas, histórias e risadas com os meninos sempre a pedir mais e mais, virou-se para mim com aquele ar doce e disse “deixem–me ir embora, preciso de almoçar…”
Vamos ter muitas saudades!
Até sempre querido António!
Sandy Gageiro
jornalista, autora do programa Lilliput, na Antena 2
Já muitos o disseram e é verdade. O António Torrado era uma pessoa muito divertida. E tinha uma característica que muito aprecio: conseguia por os outros a rir com apenas um leve sorriso, quase imperceptível. Que mestria. Vou dizer-vos, daqui a nada, qual o livro que mais gostei de divulgar no programa Lilliput da Antena 2 mas queria só partilhar, rapidamente, um episódio que muito acarinho. Aconteceu que moderei uma conversa com ele, o António Mota e a já desparecida Fanny Abramovich nas Palavras Andarilhas em Beja. Nunca me vou esquecer porque estava tão nervosa antes da apresentação e, no decorrer da sessão, ri-me tanto que as lágrimas rolavam. Muito pouco profissional, admito. Mas tão recompensador. Voltando ao livro. Lembro-me que foi com André Topa-tudo no País dos Gigantes que mais me surpreendi e mais me diverti. A minha primeira reacção foi: “o que é isto? ahahaha!!!” A partir daí, não mais deixei de me maravilhar com a pessoa e o autor multifacetado que foi António Torrado.
Nazaré de Sousa
Livreira da Livraria Hipopómatos na Lua
Ele escreve para nós como se fosse um de nós.
Pouco tempo depois de ter aberto a Casa dos Hipopómatos, um pequeno garoto de seis anos disse-me com ar sério: – Nazaré, tens livros muito bons, mas também tens um problema. Não tens livros do meu autor favorito. Nem acredito que não o conheces! Ele é mesmo bom. Até a mãe leu os livros dele.
O pequeno Arthur falava de António Torrado. O escritor que, nas suas palavras, escrevia histórias que as crianças liam e facilmente conseguiam imaginar.
– Sabes, ele escreve para nós como se fosse um de nós. Tem uma maneira especial de nos contar as coisas.
Os olhos floriram-lhe como as hastes do veado quando lhe dissemos que estava enganado. Torrado também vivia ali, num cantinho especial de onde as suas histórias saltavam, muitas vezes, para as mãos de leitores de todas as idades. Histórias sempre apreciadas pelas crianças e, amiúde, “papagueadas” pelos adultos que as acompanham. Não serão muitos os autores que reúnem esse consenso geracional. Mas são imensos os leitores que, nos últimos dias, nos têm referido a importância de Torrado no gosto e iniciação pelos livros.
Quando, na sexta-feira, fechei as portas da livraria e cheguei ao carro, o rádio deu-me a notícia. Fiquei parada durante algum tempo. Ocorreu-me a ideia de que ele tinha ido ter com a sua amiga Leonor Riscado, que também partira uns dias antes. Foi ela que me apresentou pessoalmente António Torrado. Entre pensamentos, o Arthur invadiu-me a cabeça. As palavras do menino, feito agora rapaz, ecoavam uma e outra vez. Saí do carro e voltei à livraria. Soltei todas as histórias do Mestre. Na montra, nas mesas, nas prateleiras… as histórias que escreveu para as crianças de todas as idades, como se fosse uma delas, continuam à solta na nossa casa.
Falei com o Arthur cinco dias depois. Tinha sido o professor de português a contar-lhe da partida do seu escritor preferido.
– Ainda bem que nos deixou tantos livros!
Sim, tantos. E sem prazo de validade. Para que possamos continuar a encantar miúdos e graúdos com eles. Esse é o nosso maior tributo ao Mestre e à sua obra. Mostrar a imensidão do que nos contou.
Se não conseguir ver, feche os olhos. No espelho da imaginação tudo acontece como nós queremos.