Um livro contra o silêncio

Gaza Está em Toda a Parte
Alexandra Lucas Coelho
Caminho
Depois do ataque do Hamas contra o Sul de Israel, uma série de rockets seguidos de várias outras munições que deixaram um rasto de mortes e várias pessoas feitas reféns, a jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho comprou um bilhete de avião para Israel. Esse impulso, podemos especular, terá nascido da relação tão longa que tem com os territórios da Palestina, lugares sobre os quais tem escrito há mais de duas décadas, sempre de modo atento às complexidades que formam cada espaço, cada comunidade. E da noção clara de que quase tudo iria mudar, ali e no mundo, a partir desse momento. O voo acabaria por ser cancelado e só algum tempo depois desse 7 de Outubro de 2023 a autora conseguiu aterrar em Israel. Chegar à Faixa de Gaza, claro, já não foi possível, nem para Alexandra Lucas Coelho nem para nenhum outro jornalista que quisesse fazer o seu trabalho livremente.
Sabemos o que esta a acontecer em Gaza desde 2023 pela mão de quem, em Gaza, ainda resiste. Jornalistas de profissão e gente com um telemóvel e acesso entrecortado à internet, palestinianos e palestinianas, têm sido a fonte de imagens, relatos e vídeos aterradores, mas também de alguma informação, aquela que nunca chegou aos orgãos de comunicação social a quem Israel concedeu credenciais desde que, bem entendido, os repórteres se deslocassem sempre com o exército israelita, entrevistassem as pessoas indicadas nos press-releases, visitassem os locais autorizados. Nada a ver com jornalismo, portanto. E entretanto, entre os tantos milhares de mortos na Palestina, alguns são jornalistas cujos relatos puderam ser acompanhados até ao dia em que deixaram de emitir, sabendo-se depois que passaram a estar na longa lista de vítimas do exército israelita.
A ausência de jornalistas, numa clara afronta a todas as regras democráticas levada a cabo pelo governo do país que tanta gente gosta de apontar como “a única democracia no Médio Oriente”, não será a afronta maior, naturalmente, mas é a que mais tem permitido, desde o início, que as restantes decorram sem grandes impedimentos. Talvez o mundo tivesse acordado mais cedo para o que está a acontecer em Gaza se lá houvesse jornalistas, reportando para os grandes jornais, canais de televisão e de rádio internacionais. Talvez.
Gaza Está em Toda a Parte reúne vários textos que decorrem, então, desse dia 7 de Outubro e que a autora foi escrevendo ao longo de dois anos, primeiro reportando de diferentes lugares em Israel, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, depois em registo cronístico, reflectindo sobre o que se agigantava em Gaza, argumentando, intervindo, apelando directamente a diferentes instituições mundiais, governos, organizações várias. Sendo impossível entrar em Gaza para reportar a partir de lá, este livro confirma o tanto que, ainda assim, foi possível fazer para perceber o contexto, convocar os muitos fios de um novelo extremamente complexo – na realidade presente, mas igualmente nas relações com o passado –, escutar as pessoas que podiam falar, tentar entender. E também expor, mostrar os dois pesos e as duas medidas que tantas vezes são aplicadas quando se trata da Palestina, denunciar.
Antes desse conjunto de textos, o corpo principal deste livro, há um primeiro texto mais antigo, de 2017, e que ajuda a compreender parte desse novelo, a parte anterior ao 7 de Outubro. Publicada originalmente na revista Visão História, a reportagem «Gaza: à beira de explodir» reencontra algumas pessoas com quem a autora já havia falado em reportagens anteriores e actualiza o cenário político e social. Walid, nome fictício, é uma dessas pessoas, pertenceu à cena rapper que animou Haifa uns anos antes e agora, nesse agora de 2017, desabafa sobre o que se passa, contextualizado pela reportagem que vai puxando diversos fios:
«Quase dois milhões de pessoas em que dois terços dependem da ONU desde há gerações. A guerra que terminou com a declaração do Estado de Israel, em 1948, corresponde à Nakba palestiniana, a Catástrofe: centenas de milhares de pessoas forçadas a fugir das suas casas, hoje em território israelita As Nações Unidas criaram uma agência só para lidar com esse desastre humanitário, a UNRWA. Depois de 1948 houve 1967, mais refugiados, ocupação, e é aí que continuamos, incontáveis resoluções da ONU depois. Milhões de refugiados dentro e fora da Palestina, dependência massiva da ONU e da ajuda internacional. “São como um governo paralelo, para administrar a crise”, diz Walid, que já compôs um manifesto sobre o assunto. “Fuck the US, the UN, Hamas, Fatah, Israel. Todos estão envolvidos: Turquia, Rússia, Qatar. Cada um tenta pôr a mão e administrar, manter a situação como ela é. E enquanto os árabes estiverem divididos, Israel cresce.”» (pg.28)
Saltamos seis anos, agora já oito, e o que mudou foi para muito pior. Ler os textos que foram saindo no Público entre 2023 e 2025, mesmo que possamos já tê-los lido à medida que foram sendo publicados (ainda que também haja inéditos), ajuda a perceber essa linha do tempo que começou, no espaço público, com a condenação generalizada do ataque do Hamas e, simultaneamente, com uma aceitação plena e silenciosa relativamente a tudo o que pudesse ser feito por parte do governo e do exército israelitas, e foi evoluindo, ainda que a duras penas e sem o impacto que deveria ter sido alcançado, para a compreensão de que um genocídio não é, não pode ser, resposta a um ataque, nem a nada.
Hoje estamos aqui, quase dois anos depois, somos testemunhas de tudo isto e dificilmente saberemos o que fazer com esse tremendo peso. O governo de Israel fechou a Faixa de Gaza (ainda mais do que já fechava sempre que queria), impediu a saída de quem lá estava e despejou bombas. O tempo passou sem que as instituições internacionais tomassem medidas sérias e Israel prosseguiu, mais bombas, mais tiros. A ajuda humanitária foi sendo impedida de entrar, com alguns intervalos que talvez tenham servido mais para a propaganda do que para ajudar, de facto. A fome, as doenças, a sede somaram-se aos tiros e às bombas. Quando se encerra um povo dentro de fronteiras intransponíveis e se dispara sobre ele, ao mesmo tempo que se trava a entrada de comida e medicamentos, que nome tem isto se não for genocídio? Por mais incompreensível que seja – e é, sempre – , a guerra ainda tem regras, mas não para Israel. Também sobre isso se fala neste livro, que questiona a complacência generalizada de muitos governos (incluindo o português, que ainda nem sequer reconheceu o Estado da Palestina) e a inaceitável situação de Israel tudo poder fazer sem sanções, consequências ou, em muitos casos, sequer críticas.
Aos textos, crónicas e reportagens, juntam-se dois conjuntos de imagens fotográficas captadas por Alexandra Lucas Coelho. O primeiro conjunto é da Faixa de Gaza, em 2017, e nele vemos desfilar um quotidiano de resistência, entre imposições e leis sem sentido, escassez de alimentos, impossibilidade de circular livremente, a destruição a assomar em tantos espaços. E a vida a mostrar-se na sua infinita explosão, o que nunca deixa de ser espantoso. O segundo, da Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Israel, em Dezembro de 2023 e Janeiro de 2024, é um mosaico diverso que junta aquilo a que chamaríamos instantâneos, imagens que identificamos com partes das reportagens, anotações visuais, pessoas de diferentes origens, credos e convicções. Tal como nos textos, atravessa estas imagens uma vontade de perceber, (re)conhecer, escutar, e a sua sequência, paginada tal como está, acentua esse olhar que enfrenta um complexo mosaico, ao mesmo tempo labirinto e mapa, que depois, nas legendas que surgem no final, se torna claro.
Gaza Está em Toda a Parte é um livro com muitas vertentes, registos de escrita e ângulos. O seu compromisso explícito com os direitos do povo palestiniano não ofusca o rigor na vertente jornalística nem impede a convocação de diferentes vozes, confirmando que tudo é sempre muito mais complexo do que o falso maniqueísmo que tantas vezes alimenta os discursos públicos sobre este e outros temas. Por outro lado, a integridade destas páginas acaba por ser também uma resposta a essa ideia de fazer reinar o silêncio com a proibição da entrada de jornalistas. É que, mesmo sem entrar, Alexandra Lucas Coelho já lá esteve muitas vezes e o que faz com esse conhecimento acumulado e vivido ao longo dos anos, juntando-o à reaproximação geográfica possível quando conseguiu viajar para Israel, Jerusalém Oriental e Cisjordânia no pós-7 de Outubro, é uma afirmação de que há, sim , muito a dizer sobre Gaza, sobre a Palestina e sobre um genocídio que decorre à frente dos nossos olhos. O silêncio nunca foi uma opção, nunca será.