Crítica Sara Figueiredo Costa 20 Maio 2024

Somos o que contamos e o que lutamos para contar

Eu Sou Uma Rapariga Sem História
Alice Zeniter
BCF Editores
Tradução de Maria João Madeira

Depois de vários romances e peças de teatro, a escritora francesa Alice Zeniter assina um daqueles textos que dará luta aos livreiros, cheio de caminhos híbridos e aparentes linearidades. Eu Sou Uma Rapariga Sem História, com tradução portuguesa de Maria João Madeira, começa a desafiar a leitura pelo título, a um tempo certeiro e enganador. A narrativa que Zeniter desfia é, desde o princípio, mais novelo do que linha e esta afirmação titular vai sendo desembaraçada ao longo do processo de leitura, mas digamos que se mantém fiel a uma ideia cronologicamente transversal de que as boas narrativas são as que falam de heróis (homens), o que deixa qualquer rapariga sem história, por não haver motivo para sobre ela se contar grande coisa. Ao mesmo tempo, o texto irá revelando a falta de sentido dessa ideia, e ainda que esta não seja a história de Alice Zeniter, em cada capítulo há muitas histórias que são suas. Ou, pelo menos, uma vez que não é relevante aferir essa correspondência entre quem narra e quem escreve, da personagem-narradora por si inventada.

Para esta deambulação pela arte da narrativa, a autora convoca uma série de vozes, começando pela de Ursula Le Guin e o seu A Ficção Como Cesta. Percebe-se que a linhagem de Zeniter, no que ao entendimento da ficção diz respeito, tem aqui parte do seu material genético, ainda que se estenda por outras teorias e leituras, de Aristóteles a Umberto Eco, passando por Alison Bechdel e o seu Dykes to Watch Out For. Nesse livro seminal sobre as histórias e o modo como podemos traçar-lhes uma cronologia, Le Guin propõe uma teoria da ficção que não passe pelo arquétipo do caçador, da seta que mata, do herói que conquista, e antes pela recolecção, as coisas que vamos encontrando e apanhando, reunidas num recipiente. Zeniter segue essa linha, debatendo o peso do caçador e as suas derivas patriarcais, que prosseguem até hoje: «(…) a autora americana Ursula Le Guin interroga-se sobre como é que a nossa civilização de caçadores-recolectores se tornou um berço de narrativas que não falam senão de caçadores.» (pg.12) E, mais adiante: «Há acção, conflito, um herói, é formidável. Mas também é um problema, porque este tipo de história é somente a história do herói (…)» (pg.14)

Socorrendo-se de outras leituras sobre a ficção, o livro de Alice Zeniter avança, naturalmente, para lá de Le Guin, promovendo uma reflexão sobre desigualdade, não apenas de género (algo que conseguimos fazer recuar às tais histórias de caça), mas de outros níveis que cruzam a classe, a cor da pele, o lugar concedido pela sociedade. Toda a gente conta histórias, sim, mas nem toda a gente tem acesso às mesmas tribunas e, sobretudo, nem todas as histórias fincam os pés no imaginário colectivo mais dominante, portanto, nem todas são promovidas a narrativas estruturantes pelos detentores do poder. O que só comprova a importância de continuar a contar histórias, mesmo a contra-corrente. Eu Sou Uma Rapariga Sem História é um livro sobre o facto de contarmos histórias e não tanto sobre a melhor maneira de o fazermos, ou a mais canónica, em função de épocas e geografias. O que parece fascinar Zeniter é essa capacidade de narrar e o facto de isso ser parte essencial, estruturante, da nossa existência. Há cientistas trabalhando nesse campo e uma teoria sólida aponta para a capacidade/necessidade de contar histórias como a característica que realmente diferencia seres humanos dos outros elementos do reino animal. Não é a suposta racionalidade, nem a transmissão de informação a outros elementos da espécie, são as histórias. Contamo-las e ouvimo-las contar. Sobretudo, vivemos nelas, mesmo que não haja verbalização: «Porque estamos todos a contar histórias uns aos outros, o tempo todo. E ouvimos, lemos, acolhemos também em permanência. Na realidade, estamos impregnados de narrativizações que já nem detectamos. Avançamos em linhas de textos onde acreditamos ver o real, onde pensamos que temos os dois pés bem fincados nos factos…» (pg.10) Partir desse campo comum para questionar modelos sociais, divisões e tentativas de imposição de umas histórias e de silenciamento de outras é o decurso natural dessa constatação de que as histórias fazem parte do que somos.


Independentemente da luta dos livreiros, que não se arrume este livro junto aos manuais de escrita criativa, com dicas e truques para desenvolver uma história a partir de uma qualquer receita de argumento. Na verdade, talvez Eu Sou Uma Rapariga Sem História se harmonize com os livros sobre a leitura e não tanto sobre a escrita, precisamente por estar consciente de que a segunda não existe sem uma prática abundante da primeira. Mas nem escrita nem leitura são o âmago do livro de Zeniter, e sim essa faculdade fascinante, dependente de uma outra – a da linguagem –, tanto como da memória e da imaginação, que nos faz seres humanos. O que fomos fazendo com ela e o modo como isso decidiu estruturas sociais, discriminações e desigualdades é a decorrência inevitável de algo que nos define de um modo tão absoluto. As lutas por igualdade e por direitos, portanto, cabem nas histórias, porque sempre couberam em nós.

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