Viva a noiva e a mãe dela!
No último sábado, as flores e o burburinho dos convidados enchiam a igreja. As portas se abriram, a luz da tarde clareou a entrada e lá estava ela resplandecente. Num vestido elegantemente simples, a noiva surgiu toda de branco como manda a tradição. Ao seu lado, e quebrando o que manda a tradição, ao invés do pai da noiva, estava a sua mãe. Isabel conduziu orgulhosamente a sua filha Catarina ao altar.
Fiquei maravilhada ao ver a cena, pois este simples gesto, trazia consigo uma subversão silenciosa. O ato de Isabel conduzir a sua filha até ao altar provocou uma quebra da expectativa social e uma ressignificação simbólica do ritual. O gesto não precisou mais do que três ou quatro minutos, para expressar uma potentíssima alteração nas relações de poder. A tradição, que sempre colocara o homem — o pai — no centro do ato de “entregar” a mulher, como se esta fosse uma propriedade a ser transferida de uma figura masculina para outra — do pai para o noivo — ali se fragmentou. Naquele nosso microcosmos, na Igreja aquela mãe modificava o papel historicamente estabelecido para o pai.
Na base do gesto está a história de vida daquela família, que, como em tantas outras mundo afora, está mais uma história de abandono parental. De um pai que, numa determinada altura, se demite das suas funções e sobrecarrega a mulher para cuidar dos filhos e prover o sustento para casa. Não se eximindo apenas do ponto de vista material, mas também do convívio. Por isso, filha e mãe, decidiram que seriam capazes de moldar as suas próprias narrativas. Não se tratando de uma simples inversão de papéis, uma mera substituição do homem, ademais, se considerarmos que, na igreja, entre os convidados, estava presente o pai. Mas de uma desconstrução e reorganização das próprias estruturas simbólicas que sustentam a cerimônia.
Nessas circunstâncias, a pressão do rito exigiria que cumprissem o que está convencionado. No entanto, não houve condescendências da parte delas, tal qual não houve alarde. Apenas uma afirmação tácita do feminino. Não há aqui a tentativa de se encaixar no ideal da “mulher perfeita” — a noiva e a sua mãe se posicionam fora desse discurso, rejeitando as convenções que tentam confiná-las a um papel de submissão.
O casamento, com sua carga de expectativas sociais, constrói narrativas de fragilidade em torno da figura feminina. O vestido branco, o ato de ser conduzida até o altar e “entregue”, tudo parece reforçar uma visão da mulher como passiva. Quando Isabel assumiu o papel tradicionalmente masculino, essa narrativa é rompida. É a afirmação de uma autonomia. Isabel não apenas guiou Catarina — ela rompeu com a lógica que confina o feminino à passividade e o masculino à ação. Não se tratou só de uma escolha pessoal de mãe e filha, mas de um deslocamento simbólico de uma estrutura patriarcal que, ao longo dos séculos, manteve o controle sobre os corpos e as trajetórias das mulheres.
Isabel não está “no lugar de”, ela está. Ao caminhar até o altar com a filha, Isabel também não está apenas entregando a sua Catarina. Há, aqui, uma linhagem de mulheres, mães sendo afirmadas, uma reconciliação entre o passado de resistência e o presente. Na verdade, no lugar do que teria sido uma transição de autoridade de uma figura masculina para outra, o que aconteceu naquela cerimónia foi a reafirmação de uma continuidade do poder feminino
Assim, o gesto, que poderia ter de ser lido superficialmente como uma variação de uma tradição, na verdade, comporta uma decisão profunda. Desafia a lógica patriarcal da transmissão de autoridade e propõe uma nova gramática de poder, onde a figura central é a mãe, e não o pai. O casamento deixou de ser uma simples reprodução de normas de gênero para se transformar em um espaço de contestação, onde se sublinhou a capacidade das mulheres de serem agentes da sua vida, da mudança numa estrutura social que historicamente as confinou à submissão.
Ao atravessarem a nave da igreja, mãe e filha foram serenas e com a profundidade que residia na sua quietude. Caminharam em direção ao altar que tradicionalmente simbolizava a culminar de uma narrativa de controle masculino, e que se tornava, naquela tarde, no ápice de uma jornada que começou muito antes — na história das mulheres que, geração após geração, foram moldando as suas próprias vidas, mesmo em meio às adversidades e às normas que tentaram contê-las.
Por isso, viva a noiva e a mãe dela!