Morreu, no dia 31 de janeiro, aos 106 anos, a acadêmica Cleonice Berardinelli, umas das maiores especialistas em literatura portuguesa no Brasil. Amiga de José Saramago, a quem chamava carinhosamente de “irmã mais velha e mais sabia”, Berdinelli foi uma das responsáveis pela divulgação da obra do escritor naquele país.
Em jeito de homenagem, a Blimunda recupera um texto escrito por Pilar del Río para o livro Genuína Fazendeira, publicado durante o centenário da professora brasileira.
Vem aí uma mulher
A coisa aconteceu no Rio de Janeiro, ali pelo ano de 1987. José Saramago viajou para o Brasil para apresentar o seu romance A Jangada de Pedra, história muito cervantina em que cinco pessoas percorrem a Península Ibérica à procura da utopia enquanto a própria península se procura a si mesma navegando em direção ao sul do continente americano. Pois bem, num dos atos de apresentação do livro, talvez numa universidade, José Saramago percebeu uma presença que o alegrou. Lembro-me das suas palavras: “Vem ali uma mulher que respeito”. Disse-o exatamente com estas palavras, não disse vem aí uma professora ou uma senhora, o criador de Blimunda sabia usar as palavras e os conceitos. Foi assim que, antes de haver um contato pessoal, soube quem era Cleonice Berardinelli. Depois conheci os seus livros, os seus ensaios, a forma de iluminar a literatura que Cleonice usa e nos oferece, mas naquele dia primeiro assisti a um acontecimento de admiração mútua e presenciei o rio de inteligência com que um presenciava o outro. José Saramago não era uma pessoa de trato difícil, pelo contrário, era capaz de querer a muita gente e, além disso, professava o dom da admiração. Detestava o papel de ogre permanentemente enfadado ou incomodado com as circunstâncias da vida que alguns escritores adotam, preferia a harmonia na comunicação com as outras pessoas, das que se sentia um a mais, quando não um aprendiz. Era assim, como um discípulo atento, que se aproximava de Cleonice Berardinelli, a quem queria, respeitava e admirava. O perfeito círculo do trato humano mais exigente encerrava-se naquela relação.
A professora dava-lhe tanta segurança que José Saramago, com ela, era capaz até de fazer confidências pessoais, como ficou registado na correspondência entre os dois que foi publicada. É possível que não se vissem ou se falassem com a frequência desejada, porque a realidade literária da viagem da Península Ibérica até perto do Brasil não se deu na lógica geológica, mas viver em continentes distintos não significava distância, basta dizer que nessa relação nunca coube nenhuma dúvida, nem intelectual, nem humana. Mantinha uma relação pausada e distendida, na qual o esforço não era necessário, bastava uma palavra, a citação oportuna de um texto, às vezes um olhar cúmplice para que todo o mecanismo do conhecimento fosse colocado em marcha entre eles, rodeando também as testemunhas do momento. Que poderíamos ser diversos, porque os sábios, e esta é uma característica definitiva, nunca reserva direito de admissão à sua intimidade. Por isso são universais.
Querida Professora Berardinelli, querida Cleonice, às vezes o mundo, com tantos desajustes e inconvenientes, parece obscurecer-se como se fosse raptado por uma noite sem alma. São momentos terríveis, as razões confundem ou são engolidas pelo pânico de que os esforços pessoais não sirvam diante do caos, ou que definitivamente a beleza tenha sido derrotada diante de um estado de mesquinhez que asfixia. Então é preciso lançar mão de momentos certos nos quais predomina o respeito, a sensibilidade e a admiração, e é quando aparece Cleonice Berardinelli, caminhando por um corredor, aparentemente franzina, sorriso largo, olhos radiantes, disponível. “Vem aí uma mulher que respeito”, disse José Saramago dizendo tudo. Continua a ser assim. Cleonice, o seu trabalho, a sua vida, dedicação, a força do estudo e a generosidade da partilha, a sensibilidade poética e a maestria ensaística são baluartes que nos dão ânimo para continuar. E o seu carinho, ai, o carinho que essa envolvente mestra nos dispensa a cada dia, estimula-nos e só faz crescer o respeito que sentimos. Por Cleonice, pelos professores e por nós mesmos.
Pilar del Río
Presidenta da Fundação José Saramago