Crítica Sara Figueiredo Costa 18 Fevereiro 2023

Uma história afectiva dos livros

Crónicas de um Livreiro
Martin Latham
Edições 70
Tradução de Jorge Melícias

Quem gosta de livros e tem nas livrarias um espaço onde a existência parece ganhar contornos mais animadores (ou inquietantes, também) sabe que os livreiros são aquela categoria de trabalhadores que guardam quase sempre um extenso compêndio de histórias rocambolescas, anedotas perto do inverosímil e pedidos absolutamente bizarros por parte de clientes. Nestas Crónicas de um Livreiro, Martin Latham não desilude no que toca a esse repertório e suspeitamos, mesmo, que as suas três décadas de actividade atrás de um balcão guardam muito mais episódios do género. Responsável pela Waterstones da Cantuária, no Reino Unido, Latham é também doutorado em História e foi professor durante alguns anos, algo que atravessa este livro de forma muito visível. Muito além de uma colecção de histórias passadas entre estantes e folhas impressas, estas crónicas são um percurso ao sabor do gosto, da curiosidade e da descoberta pelas tantas histórias que compõem aquilo a que a academia chama História do Livro.

Longe de um discurso historiográfico, Martin Latham vai deambulando por épocas, modos de circulação de livros e geografias, num percurso que suspeitamos ser aquele que a sua própria vontade de conhecer foi estabelecendo. Com um primeiro capítulo dedicado àquilo a que chama “livros de conforto”, aqueles volumes que, podendo não ser obras-primas da literatura, são os que nos acompanham numa fase inicial e sempre decisiva do crescimento e da formação, o autor vai orientando a sua atenção por outros caminhos, das leituras que a classe trabalhadora pôde ir fazendo em certas épocas aos vendedores ambulantes que ajudaram a espalhar ideias e conhecimento por tantos locais, muitos deles ermos e pouco atreitos à novidade, passando pelas bibliotecas, os livros de impressão barata como os chapbooks, em Inglaterra, ou os livres bleus, em França, a estranha tribo dos coleccionadores bibliográficos, a marginália que surge em manuscritos medievais ou as livrarias de lugares míticos da cena livresca, como Veneza, Paris ou Nova Iorque.

O papel dos livros em episódios históricos como a Revolução Francesa, mas também no surgimento do Protestantismo ou noutros momentos de grande mudança de paradigma, é um dos aspectos destacados nesta história alternativa do livro, se assim lhe podemos chamar (e o termo não é depreciativo, nem denunciador de incompletude, mas antes descritivo deste modo “ao sabor da curiosidade” com que Latham conduz a sua escrita): «Mas o Iluminismo e a Revolução foram conquistas não apenas de nomes como Diderot e Voltaire, Danton e Robespierre, mas de um exército esquecido de gente do povo constituído por vendedores ambulantes e feirantes, contrabandistas e escritores de livres bleus, tipógrafos idealistas e livreiros eruditos e heróicos.» (pg.271-2) É possível que não tenha sido Guttenberg o verdadeiro inventor da imprensa, ou o único, ou o primeiro, e também essa possibilidade aqui se levanta e discute, mas que a imprensa foi responsável, de um modo muito directo, por tantas das mudanças que foram abanando o mundo ao longo dos séculos, sobre isso não restam muitas dúvidas. O que Latham faz neste livro é desvendar essas contribuições, tantas vezes esquecidas no arco maior da grande História, mas facilmente verificáveis quando se pesquisa o contexto, o quotidiano dos que não ficaram com o seu nome gravado, como se costuma dizer, os movimentos que antecederam, por vezes em muito tempo, esses momentos de viragem. E esse processo de revelação recua, como seria de esperar, às épocas anteriores à imprensa, porque também esta tecnologia não surgiu do nada, já antes se faziam livros e outros materiais escritos e com imagens – para muito menos leitores, naturalmente – e já antes eles circulavam, em volumes encadernados nos mosteiros ou em folhetos volantes nas tabernas, fazendo correr histórias, mitos, ideias, propostas e temas que os diferentes poderes tantas vezes se dedicaram a proibir. Sem sucesso, pelo menos absoluto.

É nos capítulos finais que Martin Latham mais se dedica à crónica da sua vida como livreiro, uma vida que lhe aconteceu mais ou menos por acaso, numa altura em que decidiu mudar de trabalho, e que acabou por se revelar a sua verdadeira vocação. As histórias das livrarias por onde passou, lembrando gente com quem trabalhou e gente que o procurou atrás do balcão, os episódios mais ou menos alucinantes – com gente a entrar na livraria para localizar portais temporais, por exemplo – e as visitas, tantas vezes passando despercebidas, de gente famosa, como Francis Bacon ou Bob Geldof, tudo isso atravessa este livro, não como uma colecção de histórias divertidas, mas como a matéria-prima de que se vai fazendo o quotidiano de quem vende livros gostando do que faz. Com a certeza de que a memória que se vai partilhando entre aqueles com quem convivemos, os que já cá não estão e os que ainda hão-de chegar deve tanto à nossa vontade de inter-relacionamento como às páginas impressas que vão circulando, Latham faz deste mais um volume que merece resgate pelo futuro afora. Talvez alguém o encontre perdido numa prateleira de um desses lugares analógicos a que os do futuro continuarão a chamar de bibiotecas, se não se lembrarem de um nome melhor ou mais consentâneo com a realidade que vierem a ter por sua, e talvez esse alguém assegure que todas estas histórias vão continuar por aí, um lastro permanente na respiração do mundo, uma peça essencial para não nos esquecermos de como chegámos até aqui.

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