Um Saramago que emigrou para o Brasil
O filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno apresenta, num dos seus livros, a fascinante ideia dos “ex futuros eus”. Ou seja, as muitas possíveis vidas que eu, você, qualquer um de nós, não chegamos a ter. Como teria sido a minha vida se meus pais não tivessem decidido mudar de cidade quando eu tinha 6 anos? E se eu não tivesse desistido da carreira de advogado, onde estaria hoje?
Suponho que qualquer um de nós, em algum momento da vida, termine por se fazer esse tipo de questionamento. E me permito imaginar que também José Saramago, um dia, diante do jardim da sua casa com vista para o mar e os vulcões de Lanzarote, se perguntou: o que teria sido da minha vida se eu tivesse emigrado para o Brasil?
É uma história pouco conhecida mas, quando tinha 39 anos, José Saramago cogitou deixar Portugal. “Estou a encarar francamente a hipótese de ir para o Brasil, à busca de vida melhor, não de melhor vida”, escreveu numa carta dirigida a Nataniel Costa, em 27 de Fevereiro de 1962. Na mensagem escrita ao amigo (e patrão) que vivia na França, José lista a falta de perspectiva, os problemas pessoais e a vida cheia de obrigações como os motivos que o fazem pensar em abandonar a “amargurada e infeliz” terra onde vive. Portugal estava sob a ditadura de António de Oliveira Salazar fazia décadas. Após ter escrito um romance aos 24 anos, Saramago havia abandonado vários projetos de livros e não voltara a publicar. Trabalhava numa editora exercendo uma atividade maçante e burocrática que terminava por ser um peso, mais um. Não enxergava nem para o país, nem para si, um futuro melhor. Enquanto isso, o Brasil era visto como o lugar das oportunidades. Alguns intelectuais, como Jorge de Sena, com quem Saramago se correspondia nessa altura, tinham se exilado no país. Talvez fosse esse o melhor destino, pensava.
Não há registro de que a ideia tenha passado de uma vontade. Provavelmente José Saramago não chegou a fazer qualquer movimento no sentido de partir. Para o país as coisas viriam a melhorar em 1974, com a revolução que devolveu a liberdade aos portugueses. O escritor ainda teve que esperar uns anos mais – e trabalhar muito –para que as coisas melhorassem na sua vida. Os prêmios, os leitores e o reconhecimento internacional só aconteceram nos anos 80 (demoraram a chegar, mas depois vieram aos montes).
Em 1983 o escritor, finalmente, conheceu o Brasil. A partir dessa primeira viagem retornou dezenas de vezes. Nos diários que escreveu, os Cadernos de Lanzarote, deixou registro de algumas dessas visitas, da relação que estabelece com o país e das amizades que criou. Nunca, no entanto, fez referência àquela ideia que alguma vez teve de emigrar.
Que vida teria construído esse José Saramago no Brasil? Escreveria livros? Sobre quais assuntos? Teria leitores? Seria um escritor respeitado e galardoado? São perguntas sem respostas, mas é difícil imaginar que outra vida terminaria sendo tão plena como a que esse José Saramago que permaneceu em Portugal foi capaz de construir. Morreu aos 87 anos, na casa que levantou graças aos livros que escreveu e na companhia da mulher que tanto amou. A sua morte foi sentida por todo o mundo e a sua obra, até hoje, é lida e aclamada. Inclusive no Brasil, país para onde um dia pensou em se mudar.
Ricardo Viel é jornalista, um dos autores do álbum biográfico «Saramago, os seus nomes», trabalha desde 2013 na Fundação José Saramago.
Texto originalmente publicado na revista Palavra #11, edição do SESC (Brasil). Foi mantida a norma do português brasileiro.