Destaque Sara Figueiredo Costa 2 Maio 2023
© Sílvia Moldes Matias

Um Relâmpago pelo desporto popular

A Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago nasceu oficialmente há dois anos, no 1º de Maio de 2021, e tem desenvolvido as suas actividades na zona oriental de Lisboa. Nesta colectividade ainda sem casa fixa, desporto também é cidadania, política e activismo.

Todas as fotos © Sílvia Moldes Matias

Todas as sextas-feiras, no campo do Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia, em Lisboa, o Relâmpago junta-se para a festa do futebol. Fundada em 2021, a Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago é um colectivo com gente de todas as idades que acredita no desporto como forma de convívio, mas também de intervenção política. Se em tantos comentários de café essa intervenção é hoje apresentada como algo negativo, com tanta gente a assumir-se “apolítica”, os membros de O Relâmpago não deixaram escapar o sentido original da palavra: para elas e eles, a política é o governo da pólis e isso somos nós, em relação uns com os outros, partilhando espaços, direitos, deveres, ideias e formas de as concretizar.

«Como data de fundação, nós pusémos o 1º de Maio, pronto, para já marcar e vincar uma certa maneira de ver o mundo e a sociedade.» Quem fala é Eupremio Scarpa, 54 anos, presidente da direcção da associação. Sentado numa das mesas corridas por trás do campo de futebol de Santa Engrácia, é ele quem vai contando a história deste clube recém-formado: «Era um grupo de amigos apaixonados por futebol e estávamos um bocado cansados de andar atrás dos horários que as televisões e o business nos impunham. Éramos um grupo bastante grande e todos os domingos nos encontrávamos pelo gosto mesmo de estar juntos e íamos ver jogos das divisões inferiores, da segunda divisão distrital.» Nascido em Milão, Eupremio vive em Lisboa desde 2001. Mantém as suas raízes no sotaque, mas é em Lisboa que se sente em casa e é aqui que quer ficar: «Estava cansado de viver em Milão e tinha um contacto em Portugal. Naquela altura era muito mais atlético do que agora, jogava capoeira, o meu professor de capoeira era educador aqui em Portugal. Eu sou educador de formação, para além de ter uma licenciatura em Ciências Políticas, também. E queria mudar de ares, o Berlusconi tinha de novo ganho as eleições, pá, não queria saber nada de Itália e fui-me embora.»

Os relampaguistas tanto se encontram entre as quatro linhas do campo como nas recentes manifestações do movimento Vida Justa ou pelo direito à habitação, que percorreram as ruas de Lisboa e de várias outras cidades portuguesas. O clube subscreveu os manifestos de ambos os protestos e fez questão de estar presente enquanto colectivo, camisolas azul e grená com as cores da equipa, faixas reclamando direitos apoiadas pelas vozes de quem saiu à rua.

O problema da habitação é um dos que mais directamente afecta o Relâmpago, que desenvolve as suas actividades nos espaços de outros clubes e associações de bairro, quase sempre na zona oriental de Lisboa, porque não tem sede própria. Encontrar uma sede não está a ser tarefa fácil numa cidade onde a especulação imobiliária fez disparar os preços das casas, empurrou gente para a periferia – aumentando, também aí, os preços do arrendamento – e complicou a vida a colectividades e associações como esta. «É difícil encontrar uma sede», diz Eupremio, «porque a nível de apoios públicos e de espaços que podíamos aproveitar através das Juntas e da Câmara [Municipal], zero! Entrar no mercado livre… se já uma pessoa normal a tentar encontrar casa encontra o que nós temos, imagina um clube.» Apesar disso, a ligação entre o clube e a comunidade vai-se construindo, ainda que essa comunidade esteja espalhada pelo eixo Beato-Marvila- Santa Engrácia-Graça-Penha de França. Para o Relâmpago, esta ligação às pessoas que habitam os bairros onde o clube desenvolve as suas actividades é importante, porque o desporto também é cidadania, também é política: «Um clube é sempre o espelho do bairro em que está inserido», afirma Eupremio. «Tem uma ligação muito forte, uma simbiose, entre o clube e a sua comunidade.» Nas costas das camisolas do Relâmpago lê-se a frase “Pelo desporto popular” e é isso que os sócios põem em prática, nos recintos desportivos por onde passam e fora deles.

Registada em 2021, a Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago começou a nascer três anos antes, como conta Eupremio Scarpa: «Neste momento, se tu vais a um jogo da primeira divisão, da segunda divisão, és um mero usufruidor de um espectáculo que te é quase imposto (…) e nós estávamos um bocado cansados disso, muita gente de nós é apaixonada de história e de história do associativismo. Aliás, até está aqui presente o João, que é outro dos sócios fundadores…»

João Santana da Silva junta-se a nós na mesa corrida. É investigador do Instituto de Ciências Sociais, na Universidade de Lisboa e é aí que estuda os bairros operários de Lisboa, o associativismo e também o papel que o futebol foi tendo nessa história. É ele o responsável pelo nome Relâmpago, homenagem a um velho clube lisboeta, há muito desaparecido: «Havia um Relâmpago… Quer dizer, nem há uma ligação assim muito forte fraternal a esse Relâmpago, não sabemos assim tanto sobre ele. Sabemos só que o Relâmpago era uma equipa que tinha surgido nos anos 30, em que surgiram muitas equipas, nos anos 20 e 30, aqui em Lisboa, sobretudo nos bairros populares e operários, e o Relâmpago é uma das equipas que surge nos anos 30 e desaparece uns anos depois. E era uma equipa que tinha uma sede na parte de trás de uma mercearia ali de Marvila.» A história do clube sediado nas traseiras de uma mercearia conquistou a simpatia do grupo. E assim ficou.

Enquanto João Santana da Silva fala do velho Relâmpago, senta-se à mesa mais um sócio do clube. Joaquim Borges, 14 anos, está no Relâmpago há quase um ano e frequenta as sextas-feiras boleiras, como lhes chamam os relampaguistas, sempre que pode. Hoje não joga, porque está lesionado, mas costuma jogar: «Jogo sempre que posso e também participo noutras acções, como ir a manifestações identificado com a camisola do clube, que é sempre um bom manto para se vestir numa manifestação, porque me faz saber que estou com as pessoas certas a manifestar-me.»

Foi através da mãe que conheceu o Relâmpago. Nessa altura, já tinha deixado de jogar futsal federado: «Não queria um compromisso que tivesse de ir sempre a treinos e queria um desporto mais livre, em que estivesse mais à vontade. Vim jogar a primeira vez com um amigo e adorei. A partir daí, vim sempre e já trouxe amigos para conhecerem este tipo de cultura, que é um bocado afastada da que temos na escola, e é uma cultura que toda a gente devia conhecer, porque mostra que o futebol não é só dos grandes, não é só competição. Isto é o verdadeiro futebol.» O verdadeiro futebol, para Joaquim, é isto: pessoas de todas as idades, de todos os géneros, de muitas geografias e outros tantos idiomas. «Somos todos diferentes, mas o objectivo é igual, é jogar futebol porque gostamos de jogar, não interessa como somos. É isso que me traz aqui às sextas-feiras, viver este tipo de gente e as diferenças de todos, que é o que forma um futebol melhor.»

Os jogos de sexta-feira são um dos pontos altos da agenda do clube, onde também há outros desportos, como conta Simão Fernandes, o sócio que ajudou a trazer o Atletismo para o Relâmpago: «Há que dar ênfase a todas as modalidades. Cada uma delas… são todas importantes, nenhuma mais do que as restantes. Além dos sócios, o que compõe o Relâmpago são as modalidades, porque cada um de nós faz o que gosta e contribui com o que sabe. No meu caso, o atletismo e o ciclismo. O que é de realçar aqui é a contribuição que cada modalidade traz para a associação. Se estivéssemos só aqui a curtir, era só associação recreativa.»

Xadrez, boxe, futebol, futsal, ciclismo, atletismo e futebol de caricas. São estas as modalidades disponíveis por agora. No caso do futebol, para além dos jogos abertos a qualquer participante, o Relâmpago tem duas equipas, uma feminina, outra masculina, a jogar nos campeonatos distritais de Lisboa. No ciclismo o clube foi um dos responsáveis por trazer de volta a Subida da Rampa do Vale de Santo António, em 2021. A prova era um momento mítico do desporto popular lisboeta, organizada pelo Mirantense Futebol Clube entre 1941 e 1954. Desde então, as bicicletas deixaram de desafiar uma das mais íngremes colinas da capital, mas a Subida da Rampa permaneceu na memória colectiva e o Relâmpago quis ajudar a recuperá-la, como conta Eupremio: «Não somos assim preocupados com o nosso protagonismo. Nós temos naturalmente a prova rainha que é a Subida da Rampa do Vale de Santo António e podíamos ser nós a organizar, tranquilamente, mas aquela prova é uma prova que nos anos 40 e 50 era o Mirantense a fazer e estivemos mesmo lá a bater na tecla deles e a dizer, “olha, vocês faziam e vão agora fazer. Nós ajudamos!”»

As modalidades surgem conforme o interesse das pessoas associadas e do número de atletas que decidem praticá-las. O que não muda é a carta de princípios que orienta a associação: aqui, incentiva-se o desporto para todos, sem discriminações, e promove-se a participação cívica dos sócios, o convívio, o debate, a partilha.

No campo do Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia, a bola já rola nos primeiros jogos da noite. As equipas formaram-se por ordem de inscrição e toda a gente participa no mini-torneio. Idade, género ou condição física não são critério a que alguém dê importância. Protegidos pelas grades que separam o campo do Santa Engrácia da zona de convívio, vários associados do Relâmpago juntam-se nas mesas corridas. Conversam, comentam o jogo que decorre ali mesmo à frente. O céu já está escuro. O cheiro das bifanas e as garrafas de cerveja confirmam que estas sextas-feiras são momentos desportivos, mas também de convívio.

Na bancada, há quem espere a vez para jogar e quem tenha vindo só para assistir. Maria Santana assiste ao jogo e o seu companheiro integra uma das equipas. Ainda não é associada do Relâmpago, mas quer ser. «Através de amigos encontrámos este espaço que tem, para além dessa dimensão, tem de facto um espírito muitíssimo interessante do ponto de vista da valorização do desporto para todos. Esta questão de jogarem homens, mulheres, crianças, todos nas mesmas equipas, de uma forma muitíssimo saudável. Isso é muito interessante.»

Devem estar 20 a 30 pessoas nas bancadas do Santa Engrácia. O ambiente é o de um jogo de futebol à escala de um bairro, mas há algo que distingue este jogo de tantos outros: aqui, há gritos para os dois lados. Nesta fase do jogo o adepto mais entusiasta é Renato Silva. Apoia quem tem a bola e quem tenta recuperá-la. Nascido em Curitiba, no Brasil, vive em Lisboa há cinco anos e é uma das vozes mais audíveis desta claque: «Sempre que eu posso, estou aqui. O ambiente é gostoso, o pessoal é muito simpático. Ao princípio, estava um pouco acanhado, só conhecia o Diogo e o Miguel [que estão em campo enquanto Renato fala], mas depois já conhecia todo o mundo. Também já fui assistir a um dos jogos da equipa feminina, no sábado, e é bacana, é um colectivo muito bom. Hoje não estou jogando, porque eu fiz uma tatuagem ontem e estou com medo de machucar…» O que faz Renato voltar, sempre que não trabalha à sexta-feira à noite, é precisamente o ambiente, pouco comum na maioria dos jogos de futebol, independentemente da divisão: «O que me atrai é esta coisa da colectividade. Aqui, dá para brincar tanto um menino como aquele ali como a criança, a menina, uma pessoa de mais idade. Todo o mundo pode jogar. E nunca vi ninguém aqui levantar a voz para ninguém, se exaltar, brigar, então, é um ambiente bem tranquilo e um sentimento que é de colectividade, mesmo. E depois, tem uma cervejinha gelada [risos].»

Com a voz a animar um coro de adeptos, Renato incentiva Raul, que está quase a marcar o segundo golo. Logo depois, aplaude o golo da equipa adversária. Fairplay é com ele, que a dada altura grita “vai moleque, a bola é tua!”. E o “moleque” é Raul, 10 anos, o corpo franzino a contrastar com os companheiros de equipa, todos adultos. Entre passes e fintas, o cuidado de todas as pessoas em campo perante a envergadura de Raul é notório, mas é um cuidado sem condescendência. Aqui, joga-se a sério, mas para os relampaguistas jogar a sério não é jogar com violência, muito menos tirar partido das fragilidades do adversário para o derrubar. E Raul bem sabe que é assim, apesar das dificuldades que a diferença de tamanhos lhe coloca: «Sinto que é um pouco mais difícil, porque são todos adultos. Às vezes, é difícil nas recepções, nos cabeceamentos, mas já consegui habituar-me.» Quem o viu a fintar os adversários no campo, sem que nenhum deles ou delas se aproveitasse dos muitos centímetros a mais, não suspeitaria destas dificuldades.

Há quem conte as bolas que entram em cada baliza, para ir registando o avanço das equipas, mas o resultado não é o que mais importa neste campo. Nuno Trindade é um dos jogadores habituais nestas sextas-feiras do Relâmpago. Chegou ao campo do Santa Engrácia um bom bocado antes do início dos jogos, com tempo para fazer o aquecimento, e já passou por duas equipas neste torneio. Terminado mais um jogo, regressa à bancada, cansado, e explica que a rivalidade não tem lugar nestes torneios: «Estamos aqui para incentivar a prática do desporto e não há rivalidade nenhuma. Toda a gente aplaude as coisas bonitas, ri-se das situações que há para rir, tudo num espírito de camaradagem impecável.» à camaradagem, junta-se o amor ao futebol e a vontade de o partilhar com outras pessoas: «Nunca joguei federado, ou seja o que for, mas é uma paixão. É a única coisa em que eu posso dizer que estou absolutamente absorvido enquanto estou a fazer.»

As equipas oficiais de futebol do Relâmpago fazem o seu caminho no campeonato distrital. Aqui, no campo do Santa Engrácia, joga quem quiser, atleta ou não. Margot nasceu na Bélgica e vive em Lisboa desde 2020. Chegou ao Relâmpago através do xadrez, mas foi o futebol que a conquistou: «Gosto de jogos mistos. Gosto do ambiente, gosto que seja descontraído, e acho que as pessoas são gentis. Então, dá assim uma sensação de família e, se calhar, para alguém que não tem a sua família aqui, envolve.»

Enquanto Margot conversa connosco, há mais uma troca de equipas. Palmas, gritos de apoio, felicitações entre aqueles e aquelas que, ainda há pouco, eram adversários no campo. Entretanto, foi chegando mais gente às bancadas. A dada altura, uma voz cuja origem não identificamos começa a fazer-se ouvir uns decibéis acima do burburinho instalado e logo é seguida pelas vozes de toda a gente ali sentada. A melodia é a que pode escutar-se em tantos campos de futebol, mas a letra é bem diferente: Alê, alê, Relâmpago! Dentro e fora de campo, nós viemos para lutar, estamos com o Relâmpago e o desporto popular.

No campo, não há árbitro para apitar o final do jogo, mas o momento aproxima-se. Entretanto, a bola pára. Na bancada, junta-se toda a gente, quem jogou e quem só assistiu. O presidente do clube, Eupremio, coloca-se no centro do campo e aproveita o momento para lembrar algumas tarefas que têm de ser feitas durante a próxima semana. Fala da preparação para o 25 de Abril. Assim que tenta começar, as bancadas animam-se e toda a gente grita: «25 de Abril sempre, fascismo nunca mais». Eupremio acompanha o grito de guerra e depois continua, enfim, o discurso. Na celebração da Revolução dos Cravos, a equipa de atletismo do Relâmpago vai participar nas provas desportivas e no desfile da Avenida da Liberdade. É preciso dividir tarefas, saber quem integra a Corrida da Liberdade e quem prefere a caminhada (e Eupremio avisa logo que «o presidente só fará a caminhada, que para a corrida é preciso estar mais em forma…»). Quanto ao desfile, está toda a gente convocada. «À tarde temos a manif. Naturalmente, vamos todos atrás do nosso manto sagrado, como no ano passado, com as nossas bandeiras.» O manto sagrado é a enorme bandeira azul e grená, com o nome do clube estampado, que agora repousa nos ferros de protecção das bancadas do Santa Engrácia, mas que acompanha os relampaguistas para todos os lugares onde o clube se desloca, sejam provas desportivas, manifestações ou convívios.

Falta saber qual foi a equipa vencedora do torneio e o jogador que o anuncia limita-se a gritar «Margot», porque já toda a gente sabe que foi a equipa desta jogadora a que teve mais pontos. O aplauso que se segue é para a equipa de Margot, mas é também para todas as outras. “Pelo desporto popular” é a frase que se lê nas costas das camisolas do Relâmpago e que se confirma nas sextas-feiras de futebol, na intervenção cívica e em todas as actividades desta associação recreativa e desportiva que não anda aqui só para jogar à bola.

Encerrado o discurso do de Eupremio Scarpa, ainda há tempo para mais cantorias. Antes de deixarem as bancadas, rumando ao espaço do bar do Santa Engrácia, onde a noite se estenderá um pouco mais, os adeptos e adeptas deste clube popular lisboeta aproveitam a melodia e parte da letra do “Bella Ciao”, essa canção que os resistentes italianos cantavam contra os fascistas durante a II Guerra Mundial, e homenageiam o seu presidente em tom de brincadeira: Quem tem um presi, como o Eupremio, oh Bella Ciao, Bella Ciao, Bella Ciao, Ciao, Ciao, quem tem um presi, como o Eupremio, nunca mais vai parar.