

Um ícone da decência social
No mês em que passam 15 anos do desaparecimento físico de José Saramago, a Blimunda recupera um texto escrito por Luis Sepúlveda aquando da morte do autor de Memorial do Convento e publicado no jornal Público.
Caim, o último romance de José Saramago, recebi-o num dia de chuva. O envelope vinha quase desfeito, mas felizmente a tinta da esferográfica é resistente e a dedicatória não tinha sofrido qualquer dano. Há dezoito anos também chovia em Bad Homburg, uma localidade próxima de Frankfurt, durante um jantar oferecido por Ray-Güde Mertin, a nossa agente literária. Nessa tarde de chuva, enquanto todos bebíamos excelentes vinhos alemães, enquanto escritores e editores de todo o mundo contávamos em que nos ocupávamos naquela altura, ninguém se apercebeu de que a campainha da casa não funcionava. De repente, um dos empregados de mesa aproximou-se da anfitriã e sussurrou-lhe:
«Está à porta um homem chamado Saramago.»
Entrou então aquele homem magro na companhia de um anjo chamado Pilar, aquele homem que olhava para os que estavam ali reunidos com ar de quem está perdido, até que reconheceu o romancista uruguaio Mario Delgado Aparaín e os dois se fundiram num abraço.
Formou-se logo o canto dos latino-americanos, que tentávamos responder às mil perguntas que Saramago nos fazia, ele que sabia dos nossos países mais do que nós próprios.
Ele entendia a solidariedade como um facto consubstancial para ser vivido, ninguém arriscou tanto por tantas causas justas e em tão pouco tempo. Nós que o convidámos algumas vezes para ir a Chiapas, aos acampamentos de Tinduf, a qualquer outro território onde fosse preciso não uma mensagenzita de esperança sem conteúdo, mas sim um discurso forte sobre os direitos humanos, a justiça e a dignidade dos pobres, sabíamos que o mais provável era ele aceitar, pondo em risco a sua saúde e o seu precioso tempo de escritor.
Saramago soube definir melhor do que ninguém o que significava ser-se comunista neste século confuso: é uma questão de atitude, disse ele, uma questão de ética perante os acontecimentos e a história.
Agora chove nas Astúrias, enquanto a rádio me informa do falecimento desse grande homem chamado José Saramago, um ícone da decência social e autor de livros que permanecerão na memória dos séculos.
Será dura e difícil a senda dos preocupados com a ética sem a presença de José Saramago. Será duro saber que ele não está quando precisarmos da sua voz de alento nas mil batalhas ainda em curso contra um sistema feroz.
Mas eu sei que uma voz nas nossas consciências, nos momentos de dúvida ou de perigo, nos recordará que ainda continua connosco o exemplo desse homem, desse homem chamado José Saramago.