Espelho Meu Andreia Brites 15 Maio 2023

Terra de ninguém 
María José Floriano
Federico Delicado
Kalandraka 
Tradução de Elisabete Ramos

Este álbum ilustrado traz para o universo temático da literatura infantojuvenil um assunto pouco presente: o das precárias condições de vida em bairros clandestinos, favelas, bairros de lata ou outros com configurações semelhantes. O paradigma do que é próprio para ser lido por crianças tem vindo a alterar-se nos últimos anos em Portugal. A necessidade de representatividade, a força crescente de vozes periféricas e uma maior indefinição de leitores ideais contribuem para um olhar mais dedicado do mercado editorial sobre livros que exploram temas sociais e políticos.

Isso não significa que o leitor mais jovem se veja arredado da leitura destas obras. Terra de ninguém é disso exemplo. O narrador parte do exemplo dos artistas de circo para estabelecer paralelos com as ações da comunidade que vive em condições muito precárias. O discurso onírico do texto oscila entre a apologia da liberdade para a experimentação, a criatividade e o lúdico e o questionamento sobre o desconhecido. Fala-se de pessoas que se comparam a equilibristas ou mágicos e de espetáculos encenados pelas crianças com os despojos que encontram. Já a ilustração tem a função oposta: a de denunciar a fragilidade das habitações, o negócio de plantação de canábis (nunca explicitado), o lixo, a falta de móveis e o colchão no chão onde dormem quatro crianças. 

A comparação com os artistas de circo funciona como elogio às pessoas que se superam contra as adversidades recriando soluções parciais, efémeras e comprovadamente mágicas. A linearidade sintática do discurso confere-lhe um tom ingénuo que serve várias camadas de leitura. Porém, essa linearidade que parece resultar da naturalidade com que se vive numa situação de exclusão social também fere o leitor. Logo no início o narrador declara: “Caminhar entre vidros é uma arte./ Uma arte para algumas estrelas de circo,/ como os faquires, e para as crianças do meu bairro.” Na folha seguinte continua: “Desviarmo-nos de ratazanas,/ seringas e sobras de fogueiras/ faz parte do dia a dia.// Na Terra de Ninguém somos acrobatas./ Procuramos o equilíbrio entre os fios de cobre.” 

Pode parecer duro, excessivamente realista, desajustado. São juízos que ficam ao critério de mediadores. A narrativa é simbólica na sua economia textual, no jogo entre o literal e o polissémico e cumpre-se com um futuro de esperança, apesar do medo do desconhecido. Outras relações intertextuais se podem estabelecer, com a novela juvenil de Andy Mulligan, Trash, os rapazes do lixo ou com o álbum ilustrado Princípio (texto de Paula Carballeira e ilustração de Sonja Danowski), comprovando que esta é uma leitura transversal.

→ kalandraka.com