Crítica Sara Figueiredo Costa 15 Março 2024

Sem fio no labirinto

De Bestas e de Aves
Pilar Adón
Dom Quixote
Tradução de Rui Elias

Distinguido com vários prémios literários espanhóis, entre eles o Prémio Nacional de Ficção, o romance de Pilar Adón não é um livro de leitura apressada ou sinapses narrativas imediatas. Ambientado num lugar sobre o qual não há pistas suficientes para uma identificação segura, povoado de personagens que oscilam entre serem elas próprias ou afirmarem-se potenciais metáforas de alguma coisa, De Bestas e Aves exige da leitura a assunção de um pacto: em vez do abandono da esperança anunciado por Dante na entrada do inferno, o abandono dessa ligação férrea entre as palavras e os seus significados unívocos, ou melhor, entre aquilo que é escrito e a nossa necessidade sempre acesa de lhe definir um contexto seguro.

Não há, neste texto, segurança para quem lê e essa é uma das suas mais extraordinárias características. Se os ditames do comércio livreiro assumem ser precisa alguma espécie de mimetização daquilo a que chamamos real para que um romance seja bem recebido, então ela aqui está, longe de uma narrativa arrumada e factual, no centro nevrálgico do nosso cérebro-corpo em permanente tumulto para não perder o fio à vida. Não será a mais óbvia das mimetizações do real, e sobretudo não oferece digestões fáceis. De um certo modo, este é um texto que se recebe com estranheza profunda, mas se convocarmos a etimologia, De Bestas e Aves está nos antípodas do que é estranho. Aquilo que estranhamos vem de fora, do exterior, é-nos alheio e por isso difícil de compreender, e o texto de Pilar Adón constrói-se com o que levamos dentro, esse remoinho de pensamentos desordenados, medos de origem desconhecida, visões que tanto nascem do desejo como da fuga.

Uma mulher conduz um carro sem destino definido. É de noite, a mulher saiu de casa sem telemóvel nem plano e a gasolina ameaça acabar. Num movimento que parece motivado pela procura de um posto de abastecimento, mas que não sabemos ainda quanto pode dever a um impulso de fuga (da vida ou da morte), a mulher acaba por entrar num caminho que a leva até ao portão de uma quinta. Recebida por outras mulheres que ali habitam, uma espécie de comunidade cujas regras, se as há, não são explicitadas, a mulher que saiu de casa sem destino e que entrou na quinta para conseguir alguma gasolina e voltar para trás encontra-se, de repente, presa. O texto torna-se incómodo, fisicamente, até. As horas e os dias vão passando e a mulher não consegue sair daquela casa. A tensão relativamente a uma possível oposição física à sua saída pelas restantes mulheres existe, mas nunca se concretiza, pelo que a permanência da protagonista na quinta não encontra uma explicação racional: «De alguma forma, iria ficar para sempre naquela paisagem, na planície rematada pelo rochedo. Era impossível dali sair.» (p.110) Ninguém prende esta mulher, ninguém lhe veda o caminho de regresso ao portão de saída e o texto vai trabalhando um desconforto que é também julgamento – porque não parte, se tudo indica que quer fazê-lo e se ninguém a prende? Provavelmente, porque tal lhe é impossível, só a ela, independentemente de constrangimentos exteriores.

Betânia é o nome da quinta, ou do lugar que é mais do que a casa, os terrenos e o lago em volta. É também o lugar onde, na Bíblia, Lázaro ressuscita e essa leitura não deixa de estar presente em De Bestas e Aves, sem a dimensão messiânica do milagre (aqui não há Messias) e colocando no lugar o peso dessa dimensão. A casa e os seres vivos que a habitam, pessoas, animais e plantas, são o verdadeiro mistério e nenhum livro sagrado o anuncia. A natureza, que começou por ser cenário, estratagema textual para criar um ambiente de intensa asfixia emocional, vai operando ao longo da narrativa um papel que se revela equivalente ao das personagens. O texto deste estranho romance é talvez esse exercício de registar, ou mesmo de criar, a simbiose entre os diferentes seres que povoam Betânia, rodeados por uma água que é lago, mas também cisterna, lagoa subterrânea, uma substância primordial que garante a vida e acolhe a morte. Eis uma das pistas, logo no início do texto: «Não queria sequer colocar a possibilidade de que um canal corresse ao longo da margem, num percurso semelhante ao seu. A longa fenda de betão na qual ficara a sua irmã, transformada em cristal de mar, em pedra de rio, entre as algas e as raízes submersas, depois de ela lhe ter dito, dias antes, que ouvira uma cascata debaixo da almofada. Uma premonição.» (p.29) O texto de Pilar Adón não é, no entanto, lugar de resolução de mistérios, pelo que as pistas são apenas pontos onde apoiar o desconforto e seguir caminho. Do mesmo modo que a quinta parece acolher quem nela habita, transformando cada ser num elemento mais desse ecossistema indecifrável, também o texto vai engolindo cada nova cena, cada nova frase, agrupando tudo num estado onde a ideia do verbo se assume ilusória: «Não teria nada com que documentar o que estava a viver. Mas ela sabia o que estava a viver.» (p.208) À semelhança do nosso fluxo de pensamentos e emoções, De Bestas e Aves é sobretudo um labirinto e não há Ariadne que nos dê um fio para o regresso. Percorre-se por conta e risco de quem lê, mesmo sem saber se haverá saída que não desemboque numa qualquer parede.

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