
Selvagem
Emily Hughes
Orfeu Negro
Tradução de Rui Lopes
Não é preciso dominar a panóplia de referências associadas à teoria do “Bom Selvagem”, do filósofo iluminista Jean Jacques Rousseau, nem conhecer O livro da selva, de Rudyard Kipling, para se perceber sem dificuldade a mensagem desta narrativa.
O universo é o mesmo: uma bebé é acolhida na selva por um conjunto de animais com quem cresce em harmonia. Já o seu contacto com outros humanos no contexto da civilização ocidental, é bastante traumático.

A história não é, portanto, original para adultos e jovens. O que a distingue é a atitude da protagonista, a sua determinação e o desfecho que, apesar de feliz, contraria a tendência de submissão de outras narrativas que partem do mesmo lugar. Mais do que o confronto entre a natureza sem intervenção humana e a civilização, o álbum revela a total ausência de respeito pela rapariga selvagem, o total desinteresse em conhecer os seus hábitos e gostos. Não existe, sequer, uma curiosidade científica. Os humanos tentam obrigá-la a comportar-se como querem, num típico contexto familiar de imposição de comportamentos e aprendizagem.

A narrativa textual e a narrativa visual incidem sobre a protagonista e chamam a nossa atenção para o seu desconcerto e inevitável sofrimento. Num segundo momento, esta rapariga revela a sua liberdade ao rebelar-se e agir. O álbum termina como começa, com a indiferença de uns e a felicidade de outros. Os humanos civilizados abdicam de tentar aculturar alguém que provoca tamanha confusão.
O traço de Emily Hughes preenche os espaços com muitas linhas e cores, figuras naturais e objetos que se cruzam, tocam e sobrepõem parcialmente. São espaços intensos, que refletem a alegria e a liberdade da selva por oposição aos espaços fechados da cidade. A criança pertence ali porque as cores e os movimentos a integram no espaço tornando difusas as fronteiras do seu corpo no espaço onde se encontra. Na cidade a menina encolhe o corpo que nunca se apresenta em harmonia com o contexto.

Selvagem é um álbum ilustrado de leitura acessível. Porém, a sua clareza provoca juízos e levanta questões sobre a liberdade e o respeito pelo outro, podendo este ser justamente a criança que vive em nossa casa.