
Segunda Carta de Amor
Lisboa , 18 de junho
Querido Santiago Kovadloff,
Esta semana as nossas vidas se cruzaram. Quero dizer, a sua vida atravessou a minha, anos depois. Ao ouvir o seu nome pela boca da violoncelista, fui tomada por um espanto e um sorriso para logo a seguir ser arrastada para um vórtice de espaço-tempo. Estava ali, em frente à oliveira de José Saramago, em Lisboa — no dia da homenagem à sua memória — e também numa sala, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com dezenove anos. Lembrei-me de tudo: da sua altura, das palavras que ora lhe saíam num português espanholado, ora num espanhol aportuguesado, do meu acesso de tosse na conferência, das professoras quase pedindo para que me retirasse da sala — o que evidentemente não faria. Era a segunda vez que o ouvia enquanto também ouvia a música composta pelo seu filho, na apresentação sublime da violoncelista da Orquestra Sinfônica, Irene Lima, ao meio-dia, deste 18 de junho. Não soube que teve um filho, menos ainda que era compositor. Descobri que se chama Diego e tem a minha idade. Pudesse alguém controlar esse torvelinho chamado destino, quiçá tinha ele sido meu enteado. Lembrei-me ainda da dedicatória que escreveu no livro que me ofereceu e da carta de amor que lhe escrevi dias depois, num espanhol absolutamente instrumental. Pedi ao meu amigo Diógenes — que, já naquela altura, embora fosse somente um aluno da professora Bella Josef, me parecia uma reencarnação ainda mais heterodoxa do filósofo que lhe dava nome — para corrigir o meu texto.
Fui siderada por um poeta que vi duas vezes na vida, cujo livrinho li infinitas outras. Quando terminava, regressava à primeira página para observar a sua caligrafia. O que me revelava aquela letra picosa? Que não respirava, subia e descia montanhas num zás, sem hesitações. Aquela letra pertencia a um poeta, alguém feito de palavras e gentileza… um homem bom. Claro que sim, pressenti.
Durante várias semanas aguardei a sua resposta, agarrada ao tal livrinho. À medida que passavam, a minha esperança ia ficando fora de prazo. Em determinadas alturas, convencia-me de que o provável era nunca a ter recebido. Porém, noutros devaneios mais cruéis, imaginei a minha carta provocando uma cena de ciúmes folhetinesca, daquelas em que as minhas palavras inocentes (na verdade, nem tanto) seriam injustamente lançadas na sua direção. Dardos envenenados contra quem menos os merecia. Não, ele não tinha culpa de nada. Bradei no meu quarto. Outras tantas supus que o Santiago não teria respondido apenas porque a minha carta era ridícula. Como todas as cartas de amor o são, inclusive esta. “Se não fossem ridículas, não seriam cartas de amor”, como disse o seu adorado Pessoa.
Corri para casa e busquei pela capinha esverdeada na estante. Sabia perfeitamente onde estava o livro. Guardei-o, desde o nosso encontro, num lugar especial, como prova material do meu arrebatamento. O exagero é o alimento da paixão.
Então revi a sua letra e os seus versos. Há muitos anos não sabia da sua Fátima ou do rapaz que rogava a Ceci que lhe devolvesse o seu coração que não era grande coisa. E o que dizer do meu? Um coração suicida que se atirou do alto de uma carta — e que, mesmo não tendo sido nunca respondida, deu a volta no tempo. Numa espiral onde ontem e hoje se entreolharam.
Talvez o amor também seja feito desse amálgama. Um instante irrepetível, num lugar específico, uma dobra no espaço-tempo que reaparece quando menos se espera. Por isso arrisco-me de novo e lhe escrevo uma segunda carta. Menos lamechas (os portugueses têm palavras estupendas), mas não menos sincera. Porque há amores assim. Verdade que este pode não ter sido um daqueles que nos fazem abandonar tudo ou cruzar oceanos, no entanto foi bastante para preencher este improvável intervalo.
Se esta carta lhe chegar um dia, saiba que o meu amor começou num verso — e os seus ecos ainda reverberam em mim.
Com afeto antigo e um exagero indispensável.
Andréa