Crítica Sara Figueiredo Costa 26 Dezembro 2022

Salvar ou deixar arder?

O Livro do Clima
VVAA (org. Greta Thunberg)
Objectiva
Tradução de Gonçalo Neves, Isabel Veríssimo e Diogo Costa

Em certas discussões públicas sobre as mudanças climáticas e o ambiente, sobretudo aquelas que, passando na televisão, envolvem protagonistas que são profissionais do comentário (mas especialistas em coisas nenhuma), é comum reservar-se uma parte do tempo para discutir Greta Thunberg, a jovem sueca de 19 anos que ganhou protagonismo com as greves climáticas estudantis dos últimos anos. Nessas discussões, podemos assistir à performance de comentadores indignados porque «Greta Thunberg devia estar na escola e não a discursar na ONU», ou porque «Greta Thunberg só quer publicidade», ou ainda porque «Greta Thunberg está a ser manipulada». Menos comum é a discussão avançar para as propostas ou as denúncias que esta e tantas outras jovens e não tão jovens têm vindo a lançar para o espaço público, na esperança de que discutamos o que é realmente importante. Talvez O Livro do Clima, organizado por Greta Thunberg, possa colocar finalmente o debate onde ele deve estar: nos dados sobre as mudanças climáticas, nas questões da sustentabilidade, nas decisões políticas que temos de tomar colectivamente para assegurarmos que não destruímos definitivamente o planeta que habitamos, levando-nos a nós próprios e às outras espécies que connosco convivem por arrasto.

Este livro apresenta-se como um ponto da situação relativamente às questões climáticas, iluminando alguns percursos que temos feito até agora, esclarecendo números, proporções e relações entre recursos e tempo, mostrando caminhos que têm de ser percorridos se quisermos evitar um desastre de proporções inimagináveis. Começando por uma explicação científica e acessível sobre o modo como funciona o clima, prossegue com uma análise dos fenómenos climáticos, explica como esses fenómenos nos afectam, analisa as diferentes medidas que foram sendo tomadas para contrariar mudanças mais intensas e termina com um capítulo intitulado «O que urge fazer?» cuja leitura devia ser incentivada um pouco por toda a parte, sobretudo nas escolas e universidades, convocando o necessário debate em torno das suas propostas. De certo modo, O Livro do Clima é uma contribuição para que as tais proporções inimagináveis se tornem visíveis, reais, passíveis de entendimento e convocadoras de uma reacção urgente, algo que começa na capa, onde se regista, num simples gráfico de cores, o aumento progressivo das temperaturas globais da Terra desde o século XVII. A substituição dos azuis pela predominância esmagadora dos vermelhos devia ser suficiente para nos fazer agir, mas sabemos que não é, pelo que vale a pena mergulhar em cada um dos textos deste livro para se perceber o que está em causa.

Os capítulos abrem com um texto da organizadora do livro, contextualizando os temas e colocando algumas questões essenciais. Seguem-se textos de especialistas como Ana M. Vicedo-Cabrera, epidemiologista ambiental, que escreve sobre o calor e as doenças, Saleemul Huq, director do Centro Internacional Para Mudanças Climáticas e Desenvolvimento do Bangladesh, escrevendo sobre como será a vida no planeta com um aquecimento de 1,1ºC, Kevin Anderson, professor de Energia e Alterações Climáticas nas universidades de Manchester, Uppsala e Bergen, com um texto sobre o negacionismo, Friederike Otto, uma das responsáveis pela Organização Meteorológica Mundial, abordando as secas e as inundações. São mais de uma centena de contribuições de biólogos, epidemiologistas, especialistas em clima, solos, ecologia ou urbanismo, jornalistas que têm dedicado o seu trabalho a cobrir as questões climáticas, filósofos, geógrafos, escritores e ambientalistas. Uma das coisas que O Livro do Clima nos confirma é a necessidade de cruzar conhecimentos, não espartilhar as áreas de estudo em zonas fechadas, de modo a encontrarmos as soluções mais eficazes para um problema comum. A outra, que vem sendo apregoada pelos movimentos pela justiça climática até à exaustão, sem que os governos lhe dêem ouvidos, é que dispomos de dados fiáveis e cientificamente validados sobre as alterações climáticas, pelo que não se compreende a inacção de legisladores e reguladores.

Não se trata de medo ou de suposições. Sabemos que a temperatura média do planeta está, de facto, a subir e sabemos que as emissões de carbono são responsáveis por essa subida; sabemos que reduzir as emissões de carbono é a forma de travar o caos climático e que isso passa pelo abandono dos combustíveis fósseis e de sistemas de produção, sobretudo industrial, que poluem brutalmente a atmosfera, bem como os solos e os lençóis de água, e pela gestão cuidadosa dos recursos do planeta. O que não sabemos é como levar os governos do mundo a inverterem a marcha e é isso que temos de descobrir rapidamente. O Livro do Clima assume que, para o fazermos, precisamos de conhecer a fundo a situação e o seu contributo para esse conhecimento apresenta-se ao longo de mais de quatro centenas de páginas com informações científicas e conhecimentos validados, abrindo espaço para uma reflexão sustentada sobre o nosso futuro comum. Num dos textos, assinados pela escritora canadiana Margaret Atwood, fica clara a dificuldade que enfrentamos, apesar de todo o conhecimento de que dispomos: «Desde a década de 1950 que os biólogos andam a falar disto. O meu pai era entomólogo florestal e estava tão interessado na nossa estupidez colectiva como nas expectativas colectivas. Quando eu era adolescente, era habitual pairar um certo negrume à mesa enquanto jantávamos. Sim, as coisas iam piorar. Sim, era provável que poluíssemos tudo até à nossa morte, se não rebentássemos antes devido às bombas atómicas. Não, as pessoas não queriam encarar os factos. Nunca o fazem até os factos se tornarem inevitáveis. O Titanic nunca se afundaria até, de repente, se afundar. Passa-me o puré de batata.»  (pg.360) Contrariar esse estado letárgico é a proposta deste livro e, apesar da enormidade da tarefa, é a única que nos pode garantir um futuro. Claro, podemos sempre escolher não ter um, mas estaremos unanimemente de acordo com isso?

Há-de ser ingrato publicar este livro, porque talvez não sejam assim tantas as pessoas dispostas a olharem para a realidade e a aceitarem que temos de mudar tantas coisas, também no modo como vivemos (e sobretudo como consumimos, o que será um dos grandes busílis desta questão). Ainda assim, é o livro que deveríamos ler integralmente, compreendendo o buraco em que nos metemos – seria bonito dizê-lo de uma forma mais elegante, mas talvez seja altura de passarmos a uma abordagem directa: vamos dar cabo de nós e do mundo se não invertermos a marcha. Conhecer a situação de modo sustentado e com base em dados sólidos e começar a tomar decisões políticas que a invertam é mesmo vital. Se, ainda assim, preferirmos focar-nos no puré, mais vale assumirmos a derrota.

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