Crítica Sara Figueiredo Costa 31 Outubro 2023

Sair do labirinto

Carta Aberta
Goliarda Sapienza
Antígona
Tradução de Manuela Gomes

Carta Aberta é o primeiro livro de uma autora cuja obra se publicou em doses muito breves e sem grande eco nos anos 60 a 80 do século passado, e que só se tornou acessível à generalidade dos leitores depois da sua morte, em 1996. É uma daquelas histórias mirabolantes, em que alguém (Angelo Pellegrino, companheiro de vida de Goliarda Sapienza nos últimos anos) envia um manuscrito para a Feira do Livro de Frankfurt e esse manuscrito, que tinha sido rejeitado por várias editoras italianas, é acolhido por um editor que decide publicá-lo, confirmando a fraca relação entre ser-se escritor e o mundo poder saber disso. Foi assim que se publicou A Arte da Alegria (L’Arte della gioia), abrindo a possibilidade de a obra de Goliarda Sapienza ir sendo disponibilizada aos leitores. É o próprio Angelo Pellegrino que conta essa história no posfácio deste livro, um texto que homenageia a sua companheira sem cair em tentações hagiográficas, organizando a cronologia possível sobre a sua vida e partilhando o que é possível partilhar sobre o processo de escrita de uma outra pessoa.

Escrito em 1967, e publicado nessa altura, mas com pouquíssima recepção em Itália, este Carta Aberta é um romance autobiográfico, uma ficção que assume a biografia como matéria-prima, assumindo igualmente que não é o gesto de registar o que aconteceu que alimenta a escrita, mas a necessidade de mergulhar na memória e confrontar fantasmas, idealizações, becos pouco iluminados e atreitos ao engano. Em vários momentos do livro, Goliarda Sapienza afasta da narrativa qualquer ímpeto de rigor biográfico ou cronológico, e ainda assim persegue a possibilidade de agarrar algum fio que lhe permita perceber – e não tanto reconstituir, como se de uma sequência de eventos se tratasse – até que ponto os acontecimentos da sua vida, inclusive aquilo a que poderíamos chamar vida interior, ou mental, a levaram até ao lugar onde se encontra: «Hoje, 27 de Março, estou livre. Mas como é possível que a alegria por ter conseguido esvaziar esta arca selada pelo mofo – recordações de vinte anos – me paralise hoje como ontem me paralisava o medo de escutar atrás daquela porta?»  (p.43)

A voz de Sapienza é inquietante, não tanto pelo que narra, mas sobretudo pelo modo torrencial como o narra, cruzando memórias pessoais feitas material ficcional e outras que pertencem ao fio da História – a Itália da resistência ao fascismo, a guerra, a luta de classes feita quotidiano – e mostrando a cada capítulo que a possibilidade de nos orientarmos no passado a partir de marcos bem definidos e episódios perfeitamente esclarecidos é sempre uma gigantesca ilusão. As suas memórias são apresentadas como falíveis, como todas as memórias, e a sua biografia é apenas parcialmente usada como ponto de partida, misturando-se com uma ficção que será ela própria construção memorialista, desejo do que podia ter sido, receio do que realmente foi: «Não gostaria de lançar o descrédito sobre os mortos e os vivos que encontrei, mas, visto que me foram ditas – como a toda a gente, de resto – mais mentiras do que verdades, como poderia eu agora esperar falar-vos na ilusão de alcançar uma ordem-verdade? Nada disso: estou verdadeiramente em crer que este meu esforço para não morrer sufocada na desordem será um belo chorrilho de mentiras.» (pg.6) Quando a narradora nos sugere que consultemos um tratado de psicanálise, não está apenas a responder a uma potencial dúvida que possa surgir nos leitores sobre aquilo que conta, está também a confirmar que navegar nas águas deste texto é assumir que o inconsciente é tão relevante para a narrativa de uma vida como os supostos factos que a foram criando cronologicamente: «Será porventura inútil averiguar qual foi o momento exacto: ao que parece, é bastante comum uma menina, em dado momento, começar a odiar o pai, e se o assunto vos interessa, consultai um qualquer tratado de psicanálise. Terá seguramente começado quando eles dizem: estas coisas, eles sabem-nas. Por mim, sei apenas que dessa noite em diante o meu pai foi o advogado.»  (p.58-59)

A infância ocupa um espaço considerável nesta narrativa, e vai-se imiscuindo noutras fases da vida, muitos anos mais tarde, ajudando a iluminar esta teia de fios embaraçados que exige do texto o gesto de os separar e a humildade de perceber impossível essa separação. Filha de militantes anti-fascistas, a autora fez o seu percurso político assumindo simultaneamente a herança familiar, criada num tempo em que as dúvidas não tinham muito espaço para se colocarem (uma vez que o inimigo estava demasiado próximo e forte), e a necessidade de pensar criticamente as ideias e as práticas que a alimentavam e davam continuidade a essa herança. História recorrente, a crítica e a dúvida não tiveram nos círculos políticos e intelectuais de esquerda do pós-guerra um imenso número de apoiantes, o que contribuiu para isolar Goliarda Sapienza de uma sociedade que se livrou do fascismo e sobreviveu à guerra, mas que manteve os seus conservadorismos sociais e o seu machismo bem integrados nesse mundo que se anunciava novo. Também disso fala Carta Aberta, percorrendo os anos de juventude (em que se envolveu directamente na Resistência, ao lado da mãe), o teatro e o cinema a que se dedicou como actriz, as paixões e os relacionamentos amorosos.

Seguindo um percurso que podemos ir arrumando numa cronologia à medida que a leitura avança, Carta Aberta nunca é uma autobiografia, coisa que se confirma com a leitura do posfácio de Angelo Pellegrino, onde se revelam inúmeros factos e episódios que, no livro, não são referidos, ou são-no sem que seja possível perceber-lhes os contornos factuais, porque não é esse o cerne deste texto. Aqui, entre assombrações do passado e uma necessidade excruciante de dar algum sentido ao presente, o que temos o privilégio de ler é uma porta de acesso ao turbilhão de um cérebro e de um corpo (separamo-los sempre, como se tal fosse possível) que procuram ouvir-se a si próprios e encontrar um qualquer fio de Ariadne que os retire do labirinto. Ou, pelo menos, que os aproxime um pouco mais da saída e os afaste da besta que guarda o seu centro nevrálgico.

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