Mais Sísifo do que Penélope

Saber Perder
Margarida Ferra
Companhia das Letras
Sucedendo a dois livros de poesia, Curso intensivo de jardinagem e Sorte de principiante (ambos com edição da &etc), o primeiro livro em prosa de Margarida Ferra compõe-se de seis textos, sendo o último deles que dá título ao volume. Se os textos se lêem de forma autónoma, cada um mantendo a sua integridade, a leitura deste Saber Perder ganha outro corpo quando se assumem os seis momentos como capítulos de um mesmo texto. Parecerá preciosismo estruturalista, mas a travessia destas páginas merece ser completa, e mesmo que se navegue com proveito de forma descomprometida, atracando num ou noutro texto sem planeamento, é no percurso completo que está a linha de força que faz deste livro um mosaico complexo e não apenas uma colagem de fragmentos.
O primeiro capítulo, «Campo de jogos», começa com o registo do momento em que a narradora ensina o seu filho a fazer malha. É antiga a metáfora do acto de tecer relacionada com a narrativa, mas não é preciso chegar a Penélope, como se lê na página 23: «Penélope é uma imagem demasiado gasta. São muitos séculos de uso indevido das noites.» Não é a espera (de Ulisses ou de quem quer que seja) ou a necessidade de a entreter que norteia estes escritos, mas antes o gesto em si, esse fazer que leva um fio a dar voltas sobre si mesmo até chegar a ser um tecido: a escrita como processo que se vai pensando a si próprio à medida que se constrói.
A partir desse início, muito do que atravessa este livro é precisamente a escrita, não na sua vertente técnica ou oficinal, mas numa indagação sobre motivos, abandonos, desistências, impulsos. Nessa indagação, um espaço considerável é ocupado pelo constante adiamento da escrita, da sua concretização material: «Recusava convites para sair com o pretexto de que estava a escrever. (…) Essa mentira modesta fazia-me sentir poderosa. Um pequeno poder sobre mim própria: eu a controlar a minha vida, a ter umas horas para mim sem dizer o que fazia delas, sem obrigações.» (pg.16) Enquanto regista conversas soltas com Karim, o paquistanês que trabalha no café perto de casa, memórias familiares ou objectos que se mantiveram apesar do tempo, ou que desapareceram por acção deste, viagens mais longas ou pequenas deslocações no espaço, a narradora vai reflectindo sobre o papel que a escrita pode ter numa vida, na sua vida. Esses registos atravessam todo o livro, mas é logo no fim desse primeiro capítulo (ou desse primeiro texto), que se lê: «O álibi tornou-se defesa: escrever outra vez, escrever sobre a realidade, escrever para não ser dominada pelo que me acontece. Escrever para nomear. Escrever sobre a minha vida para ter algum controlo sobre ela – ser um pouco mais do que testemunha.» (pg.27) Não é uma resposta fechada, uma epifania que tudo explica e deixa às claras, nem tal se esperaria, mas é uma porta aberta para o resto do texto, um modo de apontar a luz a esta teia que há-de confirmar-se, com o avançar das páginas, imensa filigrana.

Nessa confirmação, outros fios se cruzam com este, sem que se imponha uma necessidade de identificar qual o fio dominante, qual o que sustenta o texto. Os temas que vão sendo registados e desfiados parecem obedecer ao acaso do quotidiano, sem outra planificação para além dessa dos dias que acontecem, ou, por vezes, a um interesse que se revela recorrente e que faz com que a narradora para ele se volte como modo de interpretação do mundo. Em Saber Perder, esse interesse liga-se com a museologia e a museografia, áreas caras à autora, cujo percurso profissional passa por aí. Mas não é tanto a deriva biográfica que convoca essas áreas de saber e de prática para o texto, é antes uma necessidade de dar alguma ordem ao caos do mundo. Organizar, compreender funções, catalogar, arrumar no sítio certo, tudo isso são ferramentas que permitem aos museus apresentarem as suas colecções de modo legível, e isto mesmo sabendo que as mesmas ferramentas produzirão resultados diferentes com o passar do tempo, outra reflexão que vai pontuando este texto, nomeadamente a partir de objectos que foram sempre apresentados como naturalmente pertencendo ao lugar onde se expõem, mas que é impossível, hoje, não ver como subtraídos de um outro lugar. Saber Perder será um conjunto de textos fragmentários que vão recolhendo histórias passadas, episódios quotidianos, informações avulsas sobre a biografia própria e algumas alheias, mas de certo modo talvez seja sobretudo sobre esse arrumar constante que nos domina o tempo e sobre a impossibilidade de alguma vez darmos a arrumação por concluída.
Já perto do fim do livro, no último dos textos/capítulos, conta-se a história de um avô materno que escondeu algumas moedas correntes na parede da casa que construíu, deixando pistas, vestígios para um futuro, talvez antecipando a ruína, mas antecipando igualmente a possibilidade de comunicar algo a quem testemunhasse, ou até provocasse, essa ruína. É provável que esse gesto antecipasse a ruína, mas antecipava igualmente a possibilidade de comunicar algo a quem testemunhasse, ou até provocasse, essa ruína, dando às moedas esse estatuto de coisas falantes, objectos que nos chegam de um passado mais ou menos longínquo e a quem continuamos a fazer perguntas, ou a quem atribuímos alguma espécie de sortilégio. Mais do que as metáforas que convocam textos e tecidos em longos gestos de urdidura, talvez Sísifo e a sua pedra sejam recurso mais precioso para este Saber Perder, confirmando que repetir gestos e caminhos não é necessariamente castigo.