Eu vou ser
José Jorge Letria / André Letria
Pato Lógico
As portas fechadas guardam mistérios. Escondem acessos, quadros vivos, cenários reconhecíveis ou totalmente inesperados. As portas das casas estão no pódio do mistério. É sabido. Quem nunca caiu na tentação de espreitar por uma frincha ou, perante a sucessão de impossibilidades, imaginou tudo o que se passa para além daquela parede e daquela passagem exclusiva?
O que talvez não se imagine comumente é uma panóplia de excentricidades a ocupar as habitações por trás de cada lanço de escadas de um prédio.
O desafio está lançado e o leitor surpreende-se nas sucessivas descobertas que a protagonista gentilmente partilha. A menina vai parando nos degraus da escada junto a cada porta. As pequenas marcas ao redor servem o propósito da efabulação assertiva e convicta. Se cheira sempre a peixe quando se passa por ali, naquele apartamento «vivem felizes o pirata e a sua amada». Também há lugar para outras figuras curiosas, artistas de circo, um vampiro, ou uma família de ladrões. A contrastar com o exótico ambiente inacessível dos vizinhos do prédio, em sua casa tudo é normal. Tanto quanto a realidade precisa da fantasia. Porém, o twist final oferece ao leitor uma surpresa, agora que a menina já dorme.
A narrativa sincopada acompanha o ritmo da protagonista, ora avançando para a porta seguinte, ora parando no momento da descrição dos habitantes de cada fração. A ilustração tem um papel essencial na narrativa, revelando o contraste dos patamares e das respetivas portas com os interiores das habitações. A alternância de cores, cada uma identificando os moradores, a profusão de detalhes e a exuberância dos espaços leva ao abrandamento pelo olhar que se detém.
As páginas duplas, totalmente preenchida por estes seis espaços (são seis andares até à casa da protagonista, que fica no 7.º e último) contam, por si só, seis histórias únicas. É esse afinal o propósito da menina. E o dos leitores, contagiados.
És importante
Christian Robinson
Orfeu Negro
O texto pode ser um poema. Repartidos pelas páginas ilustradas, os eventuais versos respiram lentamente e dão ênfase a uma cadência regular, como um pêndulo que se afasta e retorna ao ponto de partida. Importa provar a importância daquele a quem o texto se dirige e esse é o ímpeto das palavras.
Tamanha afirmação, de tão simples que é, corre o risco de trazer uma justificação pobre, didática, superficial, dogmática, panfletária. Christian Robinson desvia-se de perigos iminentes e opta por uma viagem paralela através da ilustração. Para além da cadência do texto, o álbum apresenta
dois movimentos crescentes e decrescentes: o
da dimensão individual no mundo e o da própria cosmogonia fundadora da vida. O grande exemplo do desenvolvimento da vida no planeta Terra serve de imagem figurada para este eixo paradigmático do presente que se estende universalmente a qualquer um. Por isso é, na história da origem da vida, tão importante todo e qualquer desvio, todo e qualquer comportamento, toda e qualquer resistência. Destes atos renasce a vida, mesmo quando o meteorito cai na Terra e os dinossauros se extinguem. Mesmo aí há um recomeço, há um inseto, um ser insignificante ao olhar de muitos que deixa uma marca e resiste. No entanto, na ilustração (e tudo isto se passa ao nível do discurso visual) o inseto não volta a aparecer, apenas um ponto negro, essa partícula ínfima no mundo que pode ser qualquer um, e pode por isso ser qualquer um de nós em qualquer geografia ou momento. O texto refere a resiliência, a solidão, a liberdade de escolha, a ilustração o estar com o outro e o ser sempre único.
Nesta poética de aproximação e afastamento, de observação e participação, os cenários e as figuras são acessíveis, reconhecíveis e empáticos a olho nu. Tudo o resto se processa em sensações impressivas e releituras. Christian Robinson é também autor dos álbuns Gaston e Outro, ambos editados em Portugal pela Orfeu Negro.