Os reflexos da Henriqueta
Marion Kadi
Fábula
Tradução de Susana Ferreira Cardoso
Quanto mais livros se lêem, quantas mais narrativas e ilustrações se desvendam, mais exigente se torna o leitor. Há quem lhe chame vício, a essa expectativa de ser surpreendido. A exigência não se esgota na surpresa, procura marcas distintivas no acto de contar uma história a partir de temas recorrentemente explorados, confirma a intencionalidade da relação entre o discurso textual e visual e deseja identificar uma coerência que dá ao livro um sentido único.
Os reflexos da Henriqueta cumprem os critérios de um álbum ilustrado que acrescenta algo ao vastíssimo universo editorial. O facto de ter sido distinguido com o Prémio Bologna Ragazzi Awards na categoria de Opera Prima e de constar na seleção White Ravens já é disso um fortíssimo indicador.
O ponto de partida da narrativa apresenta-nos o reflexo de um leão que decide procurar alguém a quem seguir depois da morte do próprio leão. Ora, a relação entre o reflexo e o seu ‘dono’ é tópico sobre o qual se escreveu muita literatura e muito se dissertou crítica e filosoficamente. A questão da identidade, que lhe subjaz, é transversal à história da arte e do pensamento. De que forma pode então este tópico ser renovado ou abordado no álbum para que se lhe garanta validade?
O que ressalva da narrativa é o efeito que o reflexo do leão tem em Henriqueta, a menina que é escolhida por si. Surpreende que não seja o reflexo do leão a transformar-se, assumindo a forma da criança e que ambas convivam com diferenças evidentes. É justamente a aparência felina e brava do reflexo que encanta Henriqueta. A menina ganha uma autoconfiança que lhe permite brincar, participar nas aulas e até dormir uma sesta. Em nenhum momento está explícito no texto ou na ilustração que a menina tinha pouca autoconfiança. Porém, o registo da mudança de comportamento leva o leitor a inferir a razão. Se a narrativa fechasse aqui com um final feliz pouco contribuiria para a tal abordagem transformadora. Só que a narrativa prossegue e Henriqueta depara-se, num momento seguinte, com as consequências do excesso de autoconfiança e o desagrado dos outros. A menina tem de encontrar um equilíbrio que lhe garanta que continuará a divertir-se e que conseguirá cumprir regras e respeitar os outros. Não será perfeito, será o possível. Será, sobretudo, um compromisso de responsabilidade firmado consigo própria depois de procurar uma solução para o conflito.
Apesar de ser tomada de assalto pelo reflexo que a escolhe, Henriqueta assume as suas ações, questiona a mudança e procura lidar com o conflito que se instala.
O que o livro nos oferece é a possibilidade de refletir sobre a ausência de uma identidade una, impermeável, estável e feliz. A protagonista descobre-o num processo de autonomia e autoconhecimento e partilha-o com os leitores com uma simplicidade avassaladora. Isso não é comum num álbum ilustrado que tem como leitor ideal o público infantil. Mas é refrescante.