Os diários de Lanzarote de João de Carvalho
Entre setembro e outubro passados, o estudante de jornalismo João de Carvalho passou uma semana hospedado na Casa José Saramago, em Lanzarote, como prémio por ter vencido o concurso Cartas de amor a José Saramago, iniciativa do realizador Miguel Gonçalves Mendes. Além de recordações, o jovem trouxe da ilha um diário da viagem. A Blimunda publica alguns excertos desse texto, que foi publicado na íntegra pela Comunidade Cultura e Arte.
Terça-feira, 26 de Setembro de 2023
Acordei humildemente na Casa do Nobel José Saramago e, antes de ir ter com o Juanjo [trabalhador da Casa e cicerone de João] para uma visita guiada pela Casa e pela Biblioteca, reparei pormenorizadamente nos detalhes da sala disposta na cave. A um canto, dois gira-discos e alguns respetivos discos vinil de José Saramago. Com autorização prévia, ajoelhei-me de forma a nivelar-me com os discos, e vasculhei-os. Alguns, um do fadista Carlos do Carmo, sobem de valor pelas dedicatórias inscritas: “Para a Pilar e para o Zé (…)”, seguindo-se o resto da dedicatória de uma letra impercetível. Num erguer-me brusco e mal calculado, senti uma tontura daquelas que dá a quem se levanta repentinamente. Ora, joguei-me para cima do sofá e senti-me a recuperar a estabilidade da visão lentamente. Sentado, com os sentidos da vista recuperados, olhei alguns prémios de José Saramago dispostos sobre uma estante, mas não foi sobre eles que estacou a minha deslumbrada visão. Sobre essa mesma estante, vi quatro fotos da Pilar quando em idade muito jovem. Ao olhá-las, uma a uma, creio ter tido a sensação de ver uma divindade. Senti-me preenchido por uma beatitude virtuosa, originada pelo vislumbre de uma mulher cujos traços faciais me relembraram a minha bela mãe, também nos seus tempos de juventude. E tal como sucedera há momentos, tive de atirar-me novamente para o sofá, de forma a recuperar os sentidos. Quando me recompus, saí de Casa e fui ter com o Juanjo ao exterior. Era tempo da visita guiada, mas havia um problema: estava em jejum desde as sete da tarde do dia anterior.
Sobrevivi àquelas tonturas de fraqueza e no resto do dia não fiz muito mais. Deixei-me estar em Casa, sentado diante da minha ansiedade. Esta, quando oriunda de boas sensações e vivências, também consegue ser bastante debilitante e exaustiva. Vi trechos do filme “José e Pilar”. Transportado pelo filme, sentei-me em silêncio em alguns dos sítios onde José Saramago havia sido filmado e partilhado momentos de cumplicidade com os seus, nomeadamente na sua piscina interior. O silêncio de um homem de palavras é aterrador, mesmo quando nos diz que tudo está bem. Na liberdade de vaguear pelo amplo quintal, intercalei a minha presença entre a piscina e uma cadeira disposta no centro do quintal, perto de uma vulcânica pedra negra de imenso valor sentimental para José Saramago. Entre sentares e levantares, cercado pelos ecos silenciosos da terra, atingi uma certeza absoluta: ainda sem conhecer a ilha de Lanzarote, havia descoberto o seu mais prazeroso fruto: permanecer sentado no centro do quintal, o exato sítio do universo onde José Saramago se sentava e olhava a terra de Fuerteventura e o mar, afirmando para si próprio que sim, que a humanidade deve prevalecer sobre a maldade, enfim, que a humanidade e o mundo têm um remédio.
Passaram-se assim, numa quietude ansiosa, as largas horas da tarde, e seguiu-se depois, no restaurante “Arepera Bar Millo y Millo”, um jantar com o Juanjo, o melhor anfitrião da ilha de Lanzarote.
Sábado, 30 de setembro de 2023
Quase nada. Fui à praia de Famara e passei por Teguise. Olhei a Montaña Blanca a partir de casa. Depois sosseguei. Mas estar sossegado, apesar de compreendido como fazer nada, não corresponde a essa compreensão. Fiz alguma coisa: sosseguei. Concederam-me o privilégio de passar algum tempo sozinho na Biblioteca de Saramago. Ao ouvir-lhe o silêncio, lembrei-me da transcendência da pedra negra. A Biblioteca e a pedra negra são semelhantes, sabe Deus no quê. Sentado sob uma meditação de pensares, tentei observar minuciosamente todas as obras daquela casa de livros. Mas era impossível. A coleção de livros de José Saramago e Pilar del Río é extensíssima: cerca de quinze mil. E todos aqueles livros residiam na cave onde eu estava hospedado no momento. Foi no dia em que os livros ultrapassaram espacialmente a cave que se decidiu proceder à construção da Biblioteca. Os pensamentos discorriam-me no cérebro. Houve um que se destacou. Ao observar a imensidão de livros, lembrei-me de Almada Negreiros e da sua famosa confissão: “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido.” Quão importante é a escolha de cada leitura que se faz! Devemos ser meticulosos nessa escolha, para que não percamos vida. Um livro assemelha-se a uma alma que nos acompanha por um determinado período de tempo, retirando-nos esse mesmo tempo. Só os bons livros ocultam essa perda, fazendo-nos ganhar algo mais precioso do que a vida em si.
Domingo, 1 de outubro de 2023
O sétimo dia de viagem coincidiu com o mesmo sétimo dia em que, depois de seis dias a criar o universo, Deus decidiu descansar: domingo. Apesar de sentir- me legitimado a descansar nesse dia, não o fiz. Subi a Montaña Blanca. Por consequência de tê-la subido, também a desci. Há atos que nos levam automaticamente a outros, fazendo-nos engolir o desígnio da causalidade. Hesitei na subida da montanha. Quando cheguei a metade, olhei para trás e reparei como a realidade se dispunha íngreme abaixo de mim. De cada vez que mirava o já distante vale da montanha, sentia o meu corpo encher-se de tremores e ansiedades. Depois de muito calcular, parado a meio de uma, na minha perspetiva, subida de montanha, decidi ir até ao fim. Se o velho septuagenário conseguiu, também eu, jovem e ágil, haveria de conseguir. Assim foi. O sucesso tem às vezes que ver com persistência. Mas o velho dos “Cadernos de Lanzarote” tinha razão. A descida é muito mais exigente que a subida. É na descida que um homem aprende que nem nas pedras pode confiar. Algumas revelam-se falsas. Vai um homem confiar-lhes todo o peso, apoiando nelas os pés, e elas desprendem-se do solo, resvalando montanha abaixo, num caminho interminável. Apesar da falsidade das ditas pedras, cheguei ao sopé são e salvo. Desde o sopé, olhei orgulhosamente a alta Montaña Blanca. Lembrei-me de José Saramago dizer que aquela montanha era o seu Evereste. E sorri. Sorri diante da realidade de tornar-me num dos pares de Saramago: havia subido o seu Evereste. Preenchi-me de romantismo perante tamanha banalidade. Naquele momento, liguei à minha mãe a contar-lhe. Cheio de entusiasmo, exclamei ao telemóvel: “Subi a Montaña Blanca!”.