
A revista Blimunda publica a segunda parte do texto de Nuno Júdice sobre José Saramago que integra o livro O Fenómeno Narrativo – do conto popular à ficção contemporânea (Ed. Colibri). A primeira parte do texto pode ser lida aqui.
A ficção da voz
Há sem dúvida um fenómeno que é preciso tentar compreender no que se pode chamar o «caso Saramago»: como é que um escritor que começou a publicar nos anos 60 só encontra o seu reconhecimento incontestável em 1982, com a publicação de Memorial do Convento? E, a partir daí, prosseguindo um caminho em que, praticamente, cada livro constitui um acontecimento? Não há muitos casos como este na nossa literatura, e talvez seja preciso ir até Eça de Queiroz para encontrar uma situação análoga: uma obra que, depois da sua hora de afirmação, não mais deixou de produzir a surpresa dando, cada ano, livros que constituem uma novidade em relação aos precedentes.

É claro que nos podemos perguntar se não se trata, no fundo, de um mesmo livro que, à maneira das Mil e uma noites, avança na invenção, ou na reinvenção, de uma arte de contar histórias (a História)? Ou estaremos a ver o nascimento de uma sequência de capítulos que compõem uma história à maneira do cânone bíblico: uma história que, aqui, não será a história de Deus e do Povo Eleito mas, mais terreamente, uma história da humanidade, ao mesmo tempo enquanto realidade e enquanto conceito? É claro que cada livro não nos apresenta a totalidade mas, sempre, uma parte dessa humanidade. Um primeiro ciclo, dá-nos precisamente o «chão» sobre o qual se ergue o edifício narrativo de Saramago: o Portugal do Alentejo em Levantado do Chão e o Portugal barroco em Memorial do comento; com O Ano da Morte de Ricardo Reis alarga-se à literatura o espectro referencial, tratando Fernando Pessoa e o seu universo no contexto da Península Ibérica em vésperas da Guerra civil de Espanha; Península que continua como tema em A Jangada de Pedra, numa perspectiva ao mesmo tempo política e cósmica; concluindo a História do cerco de Lisboa esta fase, já com a abertura para um outro plano em que intervém o uso do mito e a reflexão sobre a função e o poder daquele que usa as palavras (o revisor-tipógrafo mas, por extensão, o próprio autor), podendo deformar ou re-elaborar o real a partir de um (bom/mau) uso da escrita, o que põe em jogo o conceito de verdade romanesca — e, também por extensão, de verdade histórica.


É aqui, sem dúvida, que encontramos o primeiro momento do encontro de José Saramago com a pós-vanguarda. Com efeito, esse jogo sobre a escrita e o seu lugar na história, que já não é o desse espelho que Stendhal passeava ao longo do caminho, atraiu os teóricos da pós-modernidade, esses mesmos que nasceram para a literatura com Jorge Luís Borges e o seu questionamento da linearidade da criação literária.
Na História do Cerco de Lisboa Saramago parte esse espelho, e cada pedaço apresenta um reflexo diferente do mundo. Porém, diversamente de Rashomon, o conto de Akutagawa onde se encontra a questão da verdade e do ponto de vista (depois tratado no filme de Kurosawa a partir desse conto), em Saramago a verdade é uma criação do homem que criou a linguagem e que acredita que o mundo é a linguagem que o representa.


Não é, por isso, de surpreender o facto de Saramago ser integrado nessa categoria pós-moderna. O Evangelho segundo Jesus Cristo avança neste sentido, e aqui entramos já num outro ciclo que abandona o que se pode chamar a esfera do literário para entrar na esfera alegórica, muito mais explícita no Ensaio sobre a cegueira e em Todos os Nomes. O Evangelho segundo Jesus Cristo é o livro que re-escreve o Livro — o palimpsesto perfeito porque é escrito, aparentemente, do ponto de vista do protagonista desse Livro (o Cristo do Novo Testamento), como se a Madame Bovary pegasse na caneta para escrever a sua versão do romance de Flaubert — necessariamente mais autêntica do que a do próprio autor. Aqui é também a pós-modernidade que é posta em cena: o autor deixa-se substituir pelo personagem; e esse personagem (o próprio Deus) reivindica a condição humana, seguindo o caminho de todos esses deuses que quiseram adoptar a pele humana para experimentar o amor, o ódio, os sentimentos que só o homem pode ter. É claro que o inverso também se produz; e é José Saramago que é relegado para o papel do Criador, ou seja, na medida em que dá a Cristo o lugar do personagem que pode exercer o livre arbítrio, dando-lhe a possibilidade de fugir à condenação do Pai que o obriga a ser o Filho de Deus, ele rouba a Deus esse poder em teoria vedado ao Homem.

Para quem assistiu às conferências de Saramago a respeito dos seus livros, é impossível não se ser sensível à lógica implacável com que ele descreve a sua génese e construção, a começar pelo ponto de partida, que pode ser a anedota extra-literária e extra-textual que ele põe como elemento detonador do acto de escrita. Assim, a imagem de um falso mas qual é a verdade?) título que ele pensou ver num escaparate, em Sevilha, e de onde nasceu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Por outro lado, há o projecto — e na bibliografia que acompanha os seus livros são indicados como «a publicar» duas obras, Titerroigatra e O livro das Tentações sempre adiados, ou substituídos por outros títulos, como é o caso com A caverna. Saramago implica, portanto, o leitor no jogo da composição da obra, criando uma dinâmica da criação que a acompanha, e funciona como fundo da própria construção da obra.
Mas não sabemos já que foi a partir de uma outra construção – a do convento de Mafra — que nasceu o Memorial do Convento? E que essa construção do convento é feita ao mesmo tempo que Bartolomeu de Gusmão executa e faz voar a sua Passarola? Ou que Scarlatti constrói as suas peças musicais para a corte? Ou – também uma forma de criação — que o herdeiro do trono português é concebido? Eis como a sequência dos espelhos paralelos – ainda que com imagens diversas do mesmo – dá origem a outra(s) história(s) para além das que são contadas. Este pluralismo, ou pluralidade, dos mundos é, finalmente, uma outra forma de chegar à pós-modernidade — a que vê o desdobramento e a rizomatização das histórias que escapam, assim, ao ponto de vista dominante, o dos exploradores, para encontrarem outras versões na boca dos explorados, das minorias, dos marginais. É curioso, de resto, que Saramago se possa cruzar com a ideologia do «fim da história» através dessa disseminação plural; e que seja obrigado a voltar à «estória», a do romance, para reencontrar a realidade da «História interminável», ou simplesmente a realidade que serve de referência ao leitor tal como, em Viagem em Portugal, a realidade dos monumentos se encontra, mais do que nos manuais históricos ou artísticos, na boca desses pobres camponeses que guardam o segredo do lugar, como a mulher que é preciso encontrar para que ela abra a porta da igreja cuja chave ela esconde.

E entramos no coração do texto: o conto – de contar – que é o meio por onde passa a mensagem da história. E aqui temos uma outra forma dessa pós-modernidade, se nos lembrarmos de McLuhan que anunciava o fim da «galáxia Gutenberg» — embora o fizesse no sentido do regresso a uma oralidade negativa, a dos médias, que é uma falsa oralidade que apenas substitui a palavra pela imagem — uma imagem icónica, remetendo por isso para um signo em que o lado significante é menorizado, colocando em evidência o signo-significado, dada a exigência comunicativa da «imagem que fala da publicidade». Ora, a escrita de Saramago regressa à oralidade mas fazendo-a passar pelo discurso, mais ainda, Fazendo nascer essa oralidade do interior da própria escrita, como sua evidente necessidade.
Parece-me curioso, aliás, que uma das críticas mais comuns a respeito de Saramago seja a que diz que os seus livros são difíceis porque não têm pontuação. Abrindo ao acaso uma página qualquer, e contando vírgulas e pontos, não se pode dizer que não haja pontuação! O que essas críticas do leitor comum querem dizer é que, em Saramago, a pontuação não obedece às regras gerais da gramática. Com efeito, o que nele encontramos são vírgulas e pontos, suprimindo em geral os sinais enfáticos ou redundantes (pontos de exclamação e interrogação, dois pontos, pontos e virgula). Isso faz com que o leitor tenha de «trabalhar» o texto, ou seja, de encontrar esse lado «enfático» em que cada um tem de investir a sua subjetividade e a sua inteligência — o que, naturalmente, desmobiliza o leitor superficial. O que nós temos através desses signos elementares (virgulas e pontos) é a indicação de uma respiração da frase, num processo mais poético (no sentido de rítmico ou prosódico) do que prosaico, numa respiração que vem da oralidade, ou que é exigida por ela, e onde não vemos os outros sinais da pontuação porque não são necessários dado que é a voz, com a sua pontuação própria, que os substitui. De facto, temos aqui, talvez, a mais perfeita ilustração da afirmação de Barthes de que a narrativa é uma longa frase…
Tomemos como exemplo uma passagem de Todos os Nomes:
«O Sr. José fechou lentamente a gaveta, ainda começou a abrir outra mas não chegou ao fim do movimento, deteve-se a pensar um longo minuto, ou foram somente uns poucos segundos que pareceram horas, depois empurrou a gaveta com firmeza, depois saiu do escritório, depois foi sentar-se num dos pequenos sofás da sala, e ali ficou.»

Nada mais contrário ao que se chama um «estilo» literário, a começar pelos repetidos «depois», ou a insistência na descrição de pequenos nada — do empurrar a gaveta ao sentar-se num pequeno sofá. É isso, porém, que faz a força dessa escrita: as repetições sucessivas dos mesmos gestos de discurso em busca de um fecho que justifica o que vem antes com precisão definitiva:
«… e ali ficou…».
Não é portanto necessário ter a pontuação expressa em ternos gráficos, porque a ouvimos:
«…andou o que tinha de andar, parou onde quis, ponto final, porém o Sr. José não consegue libertar-se duma ideia fixa.»
Este «ponto final» não vem da escrita, do texto literário, onde seria inútil porque bastaria que Saramago pusesse o ponto em vez de o designar, mas do texto que é dito para ser ouvido, e é preciso que a pessoa que lê se ponha no lugar da pessoa que ouve, se desalfabetize, em certa medida, no sentido em que tem de se libertar da carga «cultural» da civilização do escrito, sendo esse no fundo o grande esforço que é pedido ao leitor. Não nos surpreendamos com essa reacção do leitor «normal», reagindo a partir dos seus (maus) hábitos, provocados pelos clichés literários e pelo seu conformismo em relação ao texto, quando o ouvimos criticar essa «falta» de uma pontuação que, no entanto, está toda lá, como o «e pur si muove» do Galileu dito a respeito de uma outra contra-verdade, e não só está lá como, por vezes, o está mesmo de um modo excessivo em relação a outros textos mais «literários», no sentido corrente do termo.
Estamos aqui no que se pode chamar o «sistema Saramago», consequência lógica do que designei, no início, como o «caso Saramago». Esse sistema está ligado à implicação do leitor na descoberta dessa voz que nasce do texto. E impossível que o leitor penetre neste universo se não fizer essa operação em que terá de recuperar o «ouvido» — o sentido que o leitor ocidental perdeu no momento em que nasceu a leitura «silenciosa», aí pelo século IV, segundo conta Santo Agostinho, impressionado com o silêncio que «ouviu» ao entrar numa sala do convento onde os monges já não iam lendo em voz alta, como habitualmente faziam, os textos que iam copiando.
No seu belo discurso de Estocolmo, Saramago abriu a porta à compreensão desse aspecto do seu trabalho de escrita ao falar-nos do avô que lhe contava as histórias que fascinaram a sua infância. Saramago não perdeu essa capacidade de escuta; e aprendeu também a arte do contador, a que permite cativar o auditório, e fasciná-lo, desde que se tome atenção a essa dimensão oral e à presença da voz no discurso que nos chega impresso. Essa voz que introduz o contar na escrita traz com ela uma sabedoria tradicional que Saramago aprendeu na infância – e é aí que encontramos um segundo registo, cuja origem está no sujeito que está por trás dessa voz. Em epígrafe a Todos os Nomes, encontramos uma frase de um apócrifo «Livro das evidências»:
Conheces o nome que te deram,
Não conheces o nome que tens.
A escrita corresponde a esse trabalho de busca de um nome – talvez o nome primordial, o que se encontra no primeiro livro de onde nasceram todos os outros (de que o arquétipo é o nome de Deus no Génesis) — mas o que é importante nessa busca é a denúncia que Saramago faz do nome que se recebe, e que não é nada se não lhe dermos uma substância, um «ser», tal como inversamente um ser não é nada sem o nome próprio.
Este é o fundo de Todos os Nomes, em que se encontra uma imagem desse arquivo que concentra os nomes da Humanidade sob a protecção de um Senhor José — o senhor Todo-o-Mundo, na tradição medieval do teatro de Gil Vicente, que ao mesmo tempo é Ninguém, na comezinha realidade do nome José.
José, Todo-o-Mundo, Ninguém, Pessoa – estamos aqui no interior de uma constelação literária e mítica que é o núcleo de um novo desenvolvimento da temática de Saramago, desta vez na direcção do mito platónico da Caverna. Não sabemos ainda qual vai ser esse desenvolvimento, mas o que é importante é vermos a coerência dessa construção que, como a do convento, obedece a uma lógica superior, não divina — o autor recusá-la-ia — mas obedecendo a um modelo de que o Homem é a sombra. Voltamos ao motivo dos espelhos paralelos: esse modelo é o reflexo da sombra que o criou, tal como o Senhor José é, sem dúvida, o reflexo do Autor — também ele em busca de uma identidade para os personagens que cria, de cada vez que escreve, e que lhe perguntam quem são, e o porquê da sua existência. É a questão que Cristo coloca ao pai, e que o instala na condição humana porque o que é próprio dessa condição é a dúvida, a interrogação, a angústia sobre o destino, a vida, a morte, o amor — todas as grandes interrogações, enfim, para que a obra de Saramago procura a sua resposta.
Nuno Júdice