Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Março 2021

Tempo sem ordem

O Regresso de Júlia Mann a Paraty
Teolinda Gersão
Porto Editora

O mais recente livro de Teolinda Gersão apresenta-se como um conjunto de três novelas relacionadas entre si, ainda que passíveis de autonomia na leitura. Atravessadas as 140 páginas que as compõem, percebe-se que talvez faça sentido assumir estes três blocos como partes de um romance, já que não é apenas a relação temática e a partilha de personagens que os une. Há uma estrutura maior que se apreende à medida que a leitura avança e que certamente compõe uma unidade, visível no modo como as muitas linhas narrativas se vão entretecendo e ignorando as barreiras que dividem os três textos.

A abrir, é Sigmund Freud quem toma a palavra. «Freud pensando em Thomas Mann em Dezembro de 1938» assume o criador da psicanálise como narrador e coloca-o em Londres, perto do fim da sua vida, num monólogo interior que começa por situar o ar do tempo, adentrando-se, aos poucos, numa reflexão sobre Thomas Mann e a sua vida psíquica. Longe de Viena, Freud ressente-se do tanto que mudou na Europa e dessa mancha que alastra com a ameaça do nazismo. Sente-se em casa em Londres, mas sabe-se velho e perto do fim, o que não o impede de manter a lucidez e a necessidade de análise constante sobre si próprio e o mundo. A reflexão sobre Thomas Mann, que a espaços será assumida como um diálogo sem interlocutor, alimenta-se recorrentemente de alguns dados biográficos do autor de Os Buddenbrook, mas principalmente da sua obra literária e do que nela se revela sobre mágoas familiares, recalcamentos e bloqueios. E sendo um percurso que aponta para Mann, numa tentativa de o analisar sem que ele o tenha pedido (tê-lo-á, pelo contrário, recusado), é sobretudo uma deambulação pela própria existência de Freud, as mágoas, recalcamentos e bloqueios que carrega consigo, mesmo que deles possa ter uma consciência que talvez Mann não possua sobre os seus.

Sigmund Freud

«Thomas Mann pensando em Freud em Dezembro de 1930» lê-se como uma resposta ao pensamento de Freud sobre Mann, e com isso começa a assomar um dos mecanismos que permitem ler este livro como um romance. A matéria da acção narrativa antecede em oito anos o texto anterior e o facto de surgir na sua sequência, e de nela se ler uma resposta ao que ainda não teria acontecido, bem como um gatilho motivador do que anteriormente já se leu, abre as portas para uma estrutura que baseia o seu avanço numa noção de tempo não linear.

Num movimento de retrocesso cronológico, a narrativa encaminha-se para o passado e nesse movimento reconhece-se uma espécie de arqueologia, a mesma que Freud chegou a usar como metáfora para a psicanálise.

Não se trata de uma simples analepse, mas antes de uma assunção sobre a pouca utilidade de uma cronologia organizada e sequencial quando se trata daquilo a que poderemos chamar vida interior. E é nesse espaço, em diálogo permanente com o mundo, mas ainda assim individual e plenamente habitado apenas por quem o vive, que este livro se constrói.

Thomas Mann

Esta estrutura confirmar-se-á no terceiro texto, o mesmo que dá título ao livro, quando a narrativa se detém em Júlia Mann, mãe de Thomas Mann, mulher nascida no Brasil e deslocada para a vida burguesa de Lübeck, na Alemanha, entretanto casada com um comerciante com quem viria a ter vários filhos e claramente perdida entre aquilo que pensava e sentia e aquilo que os outros esperavam de si. Aqui, a cronologia oscila entre a infância de Júlia Mann e o final da sua vida, deslocando-se entre um tempo em que Thomas Mann estava longe de existir e um outro em que a sua existência é já o centro de todos os conflitos que o próprio aborda no segundo texto do livro, e aos quais Freud faz referência no primeiro. Contudo, este não é um livro sobre Thomas Mann, nem sequer sobre Freud ou Júlia Mann, e aí está a sua excepcionalidade, reforçada por uma escrita que se molda a cada uma das personagens centrais sem com isso perder a identidade.

Júlia Mann

O Regresso de Júlia Mann a Paraty serão as três novelas que percorrem as vidas de Freud, Thomas Mann e Júlia Mann e os pontos onde essas vidas se tocam, mas é sobretudo um romance a várias vozes, sólido e frequentemente prodigioso, sobre o estilhaçar de uma ideia organizada de tempo e os efeitos que isso teve no nosso modo, individual e colectivo, de vermos o mundo e de procurarmos entender-nos a nós próprios. Que a sua acção, extensa e fragmentada, se reparta entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX, altura em que começa a desenhar-se um novo conceito de tempo (um dos elementos com que Einstein trabalhará na sua teoria) e uma noção clara de a memória não ser apenas o repositório das coisas que deixámos no passado, não será um acaso.

A teoria psicanalítica de Freud e o impacto tremendo que teve no pensamento do novo século, bem como na literatura que no seu início se foi criando, são elementos chave que atravessam o livro de Teolinda Gersão, ainda que em momento algum se detenha a narrativa nesta análise histórico-cultural.

Esse é, aliás, o seu imenso sortilégio, congregar o turbilhão mental que foi o início do século XX, o abalo que fez saber que nada mais poderia ser lido, entendido e olhado de modo arrumado e linear, num romance que não deixa de ser a história de três personagens. São três personagens a muitos níveis extraordinários – ainda que Júlia Mann, por ser mulher e pouco conforme aos códigos comportamentais da sua época, nunca tenha tido o merecido reconhecimento – e com intervenção directa, mesmo que de modos diferentes, em todas estas mudanças que inauguraram o século passado, mas é o cruzamento das suas histórias, sobretudo a um nível profundo e também inconsciente, que faz erguer um romance que está longe de ser um mero exercício biográfico. Que a bibliografia o registe como um conjunto de três novelas, será decisão autoral ou editorial, e obviamente legítima, mas é como romance que este livro se afirma. E um grande romance.