O que não muda
Ronaldo Correia de Brito escreve sobre as desigualdades sócio-económicas a partir das suas memórias de infância.
Na revista brasileira Continente, o escritor Ronaldo Correia de Brito assina um texto sobre as suas memórias de infância no Ceará. As longas temporadas passadas numa fazenda, Riacho Verde, servem-lhe de mote para constatar que décadas de inovação tecnológica, científica e cultural não mudaram algo essencial: a riqueza continua mal distribuída e aqueles que têm fartura continuam a dominar os restantes. «Da cidadezinha iríamos para a fazenda Riacho Verde, que tinha um açude, restos de caatinga virgem, criatório de gado e cavalos, cabras e carneiros e muitas aves domésticas. Era conhecida pela fartura e a barriga cheia dos seus donos. Nos anos de bom inverno, amarrava-se cachorro com linguiça e, nas secas, os paióis estavam abarrotados. Mas os trabalhadores agregados, sujeitos ao regime de meia, que entregavam ao dono das terras metade de tudo o que plantavam, sofriam as consequências das estiagens. E essa partilha semiescrava era mais amena no sertão do que nos engenhos da zona da mata.»
Quando a família anunciava que iria regressar à cidade, o dono da fazenda incentivava-os a ficar mais algum tempo, anunciando que iria matar um boi: «O que fazer com tanta carne, com vísceras, gorduras, ossos, orelhas, sebo, mocotós, rabo, chifres? Num armazém anexo à casa grande acendiam um fogo e meu primo mais velho e eu nos fartávamos de churrasco. Os empregados se ocupavam com a salga e secagem das carnes, em fazer sabão com os sebos e gorduras, lavar buchos e tripas, preparar embutidos. A matança tinha início pela madrugada. No almoço, servido bem cedo, travessas de iguarias cobriam a mesa grande, quase três metros. Empanturrado, eu olhava a comilança com náusea. Para quem seria toda a comida? queria saber. Para os mesmos, os saciados de sempre.» Era o Ceará na segunda metade do século XX, mas podia ser qualquer outro ponto geográfico, hoje ou há cinco séculos.