Saramaguiana
por José Saramago 22 Agosto 2025
Em março de 2002, José Saramago integrou uma delegação do Parlamento Internacional de Escritores que visitou os territórios palestinos. Em Ramala, o escritor concedeu uma entrevista a José Vericat, correspondente da BBC na Cisjordânia. A Blimunda recupera nesta edição as palavras ditas há mais de 20 anos, mas que continuam a fazer sentido hoje.

“O que me indigna é a covardia da sociedade internacional”

José Saramago, Ramala, 2002

Que propósito teve a sua visita à Palestina?

A intenção tem sido a de enviar aqui uma delegação de membros do Parlamento Internacional de Escritores para manifestar solidariedade aos narradores, poetas, dramaturgos palestinos.

O que pode ter este conflito palestino-israelita de particular?

Vamos ver: isto não é um conflito. Poderíamos chamá-lo de conflito se se tratasse de dois países, com uma fronteira e dois estados, com um exército cada um. Aqui trata-se de uma coisa completamente distinta: apartheid. Rutura da estrutura social palestina pela impossibilidade de comunicação.

Que pensa de Israel?

Um sentimento de impunidade carateriza hoje o povo israelita e o seu exército. Eles converteram-se em financiadores do holocausto. Com todo o respeito pela gente assassinada, torturada e sufocada nas câmaras de gás. Os judeus que foram sacrificados nas câmaras de gás talvez se envergonhariam se tivéssemos tempo de dizer-lhes como estão se comportando os seus descendentes. Porque eu pensei que isto era possível: que um povo que tem sofrido deveria haver aprendido do seu próprio sofrimento. O que estão fazendo com os palestinos aqui é no mesmo espírito do que sofreram antes.

Eu creio que eles não conhecem a realidade. Todos os artigos que apareceram contra mim têm sido escritos por pessoas que nunca foram saber como vivem os palestinos, quer dizer, eles não querem saber o que se está a passar aqui. Seria lógico que estivessem aqui os capacetes azuis (soldados da ONU). Mas o governo israelita não o permite. O que me indigna, e não posso calar-me, é a covardia da comunidade internacional que se deixa calar. Nem sequer falo dos Estados Unidos, do lobby judeu, de tudo isso que é mais que conhecido. Falo da União Europeia. Europa, o berço da arte, da grande literatura, tudo isso. E todos a assistir a isto, a este desastre, e ninguém intervém.

Parece-lhe pertinente a analogia entre o sofrimento dos palestinos hoje, e o sofrimento dos judeus que teve lugar durante o regime nazista e em particular nos campos de concentração?

Isso de Auschwitz foi, evidentemente, uma comparação a propósito. Um protesto formulado em termos habituais, quiçá não provocasse a reação que tem provocado. Claro que não há câmaras de gás para exterminar palestinos, mas a situação na qual se encontra o povo palestino é uma situação concentracionária: ninguém pode sair das suas povoações. Eu o disse e dito está. Mas, se incomoda muito isso de Auschwitz, eu posso substituir muito isso de Auschwitz, eu posso substituir essa palavra, e em lugar de dizer Auschwitz. digo crimes contra a humanidade. Não é uma questão de mais vítimas ou menos vítimas; não é uma questão de mais trágico ou menos trágico: é o facto em si. Isto que está a acontecer em Israel contra os palestinos é um crime contra a humanidade. Os palestinos são vítimas de crimes contra a humanidade cometidos pelo governo de Israel com o aplauso do seu povo.

Não crê que as suas declarações têm um efeito contraproducente?

Não tem nenhum efeito contraproducente. Há críticas e há críticas. Há críticas que são conhecidas e portanto não têm nenhum efeito; quer dizer: fazem-se e repetem-se infinitamente.

O que é que o senhor escreveu que tenha mais relevância com este conflito?

Uma novela que publiquei há cinco ou seis anos, Ensaio sobre a Cegueira, que vendeu aqui sessenta mil exemplares. Até há alguns dias, eu era aqui [em Israel] um bestseller. Agora os meus livros estão sendo retirados das livrarias. É uma novela que narra como todo o mundo se torna cego. Porque a minha opinião é que todos somos cegos. Cegos porque não temos sido capazes de criar um mundo que valha a pena. Porque este mundo, como está e como é, não vale a pena. Isto poderia ter relevância, se os políticos se interessassem por literatura. Se há algo sobre o que reflectir, é sobre a capacidade que temos, ou que não temos, de inventar um modo de relação humana onde o imperativo seja o respeito humano, e o respeito ao outro.

Qual é o papel da literatura neste conflito?

Nenhum. Essa ideia de que os escritores têm que salvar o mundo… Gostaríamos de fazê-lo, é claro. Se fosse pela arte e tudo o que temos feito de bonito no passado, se isso servisse para algo, não estaríamos como estamos. A intervenção que os escritores possam e devam ter, é pelo simples facto de que são cidadãos. Claro que também são escritores. Se se nos pede algo, ou se por iniciativa nossa temos algo para dizer, escrevemos. Mas, além de ter o que tenhamos para dizer, também há o que temos para fazer. E o fazer é intervir na vida, não só no seu próprio país, mas também no mundo.

A imprensa internacional publicou declarações atribuídas ao senhor referindo-se aos atos do exército israelita como atos “nazistas” e fazendo críticas bastantes duras ao governo de Israel. Qual é exatamente a sua posição diante do conflito no Oriente Médio?

A declaração de que o exército israelita se tornou “judeu nazi” foi de um grande intelectual judeu (Yeshayahu Leibowitz, que morreu em 1994), respeitado tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista intelectual. Não estou a usar essa espécie de guarda-chuva para me proteger de qualquer tempestade. Mas esta ideia de que algo profundamente negativo, destrutivo, entrou no espírito de Israel, eu não fui a primeira pessoa a dizê-lo. Hoje mesmo outros israelitas reconhecem isso.

Outra afirmação que o senhor teria feito sobre Israel, foi comparar a forma com que o governo israelita tem tratado os palestinos como uma espécie de apartheid…

Não é uma espécie de apartheid, é rigorosamente um apartheid, e sobre isso só tem dúvidas quem não veio aqui nunca. Se alguém quiser ser informado, supondo que as autoridades militares permitam o acesso, a passagem nos postos de controle para chegar às aldeias e cidades palestinas que estão completamente isoladas, onde não se pode entrar e de onde não se pode sair sem a autorização do Exército, se se quer ver como isto é efetivamente, há que vir aqui.

A informação que nós temos, aquela que circula internacionalmente, dá sempre uma imagem de um lado e deixa outro praticamente omisso, ou apenas com as imagens de palestinos disparando para o ar quando acompanham os seus mortos. Eu não estou dizendo que os israelitas são uns demónios e que os palestinos são uns anjos, não se trata disso, anjos e demónios há de um lado e de outro. O que se passa é que a situação política aqui, a situação de guerra que se criou, teve como resultado a ocupação militar de praticamente todo o suposto território palestino, o isolamento de todas as aldeias e cidades palestinas e a impossibilidade de se circular no próprio território. Isso, se não é apartheid, como é que lhe havemos de chamar.

O senhor diria que nos últimos anos, principalmente durante o governo do primeiro-ministro Ariel Sharon, essa situação tem-se agravado?

Ela tem-se agravado nos últimos tempos. Mas, enquanto foi primeiro-ministro o sr. Barak, construíram-se mais colonatos no interior do território palestino do que aqueles construídos quando foi primeiro-ministro o sr. Netanyahu. Quer dizer, o mesmo sr. Barak, que supostamente se propunha em fazer a paz, instalava cada vez mais colonatos no interior dos territórios ocupados.

E aqui há um ponto que é necessário reconhecer: os colonatos precisam do exército para se defender. Mas o exército precisa dos colonatos para estar instalado ali. E desta lógica, que é uma lógica absolutamente infernal, não se consegue sair, porque efetivamente a paz que querem os governos de Israel não é uma paz justa, não é uma paz que reconheça efetivamente os direitos dos palestinos de ter um Estado, de ter uma identidade própria, uma vida que seja sua. Os palestinos são desprezados pela população de Israel, e isso não é demagogia, é a mais pura das verdades, e quem quiser confirmá-la que venha aqui.

O senhor falou sobre como a comunidade internacional vê esse conflito. O senhor não acredita que, principalmente depois de atos de extrema violência, como o atentado de ontem (quarta-feira, em que 20 israelitas foram mortas numa explosão), fica mais difícil ainda para a comunidade palestina divulgar a sua luta, as suas reivindicações à comunidade internacional?

Em primeiro lugar, eu não estou nem a justificar nem a defender este ato. Todos os atos de violência praticados pelos palestinos são obstáculos à paz. Mas os atos de violência praticados pelo exército israelita não são obstáculos à paz… Aldeias arrasadas, milhares de mortos, gente expulsa em 1948… Fala-se do Holocausto judeu, mas também houve uma espécie de Holocausto palestino. Um milhão de pessoas foram deslocadas de suas casas em 1948. Ainda ontem estivemos em Gaza, e 150 casas foram destruídas por tanques e escavadoras. Aqui castiga-se uma ação de violência praticada por um palestino com a destruição da casa, ou de uma aldeia. Então os atos de violência dos israelitas não são obstáculos à paz?

Nessa situação, que perspetivas vê o senhor para esse conflito? O senhor tem algum otimismo em relação ao plano de paz saudita, ou às atuais negociações?

Eu não tenho nenhum otimismo, porque efetivamente o governo de Israel não quer a paz. Quer uma paz que lhe convenha, não uma paz justa que levasse em conta o direito do povo palestino de ter a sua própria vida. Sou completamente cético em relação ao êxito de qualquer plano.

E, recentemente, numa proposta dos Estados Unidos das Nações Unidas, foi reconhecido que o povo palestino tem direito a viver no seu próprio Estado. Mas como se organiza esse Estado, se os colonatos israelitas nos territórios ocupados são 205, e todos protegidos pelo exército e eles próprios armados? Como se quer falar num plano de paz que ignore essa realidade?

Devido às suas mais recentes declarações, tem havido em Israel um boicote dos seus livros. Como vê o senhor esse tipo de reação?

Isso é natural. Acho que, no fundo, são reações de pessoas que não aguentam que se lhes diga a verdade. Retirar os meus livros das livrarias é, talvez, um primeiro passo, que pode levar um segundo passo, que é queimá-los em praça pública. Tudo pode acontecer.