
O Pai Natal não vive no Polo Norte
Afonso Cruz
Fábula
Não é a primeira vez que Afonso Cruz critica o capitalismo num livro infantojuvenil. Em Capital, um álbum sem texto da Pato Lógico, o autor discorre sobre o mesmo tópico a partir da personagem do porco mealheiro cuja força aumenta até ser indomável.
Agora, o autor apresenta, através do diálogo entre texto e imagem, a hipocrisia do consumo e a exploração do outro ao serviço daquilo que seria a função altruísta da figura do Pai Natal. Este Pai Natal, que no texto vive em harmonia com as suas renas e os seus duendes, não é outro senão um empresário fabril que explora o trabalho infantil, faz circular os brinquedos que produz por todo o mundo, deixando uma enorme pegada ecológica, até chegarem às lojas dos centros comerciais, e depois a casa de quem os pode pagar.

O maior contraste verifica-se quando se observa o texto e a ilustração sobre o trabalho na fábrica e o momento final, com a chegada das prendas a casa das crianças. Os tons escuros, cinzas e pardos contrastam com os vermelhos, rosas e castanhos. As crianças sujas, com rostos deformados, descalças e com roupas rasgadas estão sentadas em bancos a acabar carrinhos de brincar. O texto é o seguinte: “onde os seus duendes trabalham dia e noite sem nunca se cansarem. E cantam de alegria enquanto fabricam tanta felicidade em forma de bonecas e carrinhos.” Já no final, à imagem de duas crianças sorridentes a quem não faltam óculos, sapatos e roupas festivas, assim como uma árvore de natal decorada a rigor, corresponde esta frase: “E é assim que os meninos bem-comportados recebem as suas prendas.”

A ironia discursiva de Afonso Cruz é um murro no estômago para o leitor, que depois de assistir a todo o percurso das ditas prendas, constata que os meninos bem-comportados são aqueles que vivem num lugar de privilégio, e a quem é possível contar a fantasia do Pai Natal. Tudo é mérito e o mérito é a maior das falsidades.
No posfácio, Joana Bértholo chama a atenção para a importância da fantasia e do encantamento que aqui são claramente destruídos. Caberá ao leitor, sobretudo ao mediador, decidir sobre a mensagem que prefere, que considera mais adequada aos seus valores. Neste livro não há margem para dúvidas. É, mais do que uma crítica, uma denúncia à destruição, à desigualdade, à injustiça e à indiferença que o capitalismo provoca. Porém, Joana Bértholo também refere, a propósito do sonho e da esperança, que estes não devem ser iludidos. Significa então, como a própria explica, que há uma leitura para este livro que pode preservar a fantasia e o sonho, valorizando ações e intenções verdadeiras e justas. Ainda, há que assinalar outra linha de pensamento que o livro explora: a abissal diferença entre o discurso e a realidade. Quando tanto se fala, de forma muitas vezes superficial e leviana, sobre a literacia e a desinformação, este é também um contributo importante para a leitura do que se observa diretamente em relação com o que se ouve, o que se vê e o que se lê através de mediação.

Finalmente, a eterna questão da faixa etária dos destinatários. Não é um livro para crianças pequenas porque estas ainda não têm conhecimento do mundo para relacionarem a história com o seu contexto. Também porque os níveis de contradição entre texto e ilustração não seriam facilmente resolvidos por elas, precisamente pela falta de contexto. Mas não é, de todo, um livro ilustrado para adultos. É um livro para todos a partir dos 9, 10, 11 anos. E com ele todos perdemos mais um bocadinho de inocência.