Crítica Sara Figueiredo Costa 24 Junho 2022

Movimento perpétuo

O Fim É Igual ao Princípio
Pedro Bandeira e Xavier Almeida
Pierrot Le Fou/Estrela Decadente

No princípio era o tédio. Como em todas as cosmogonias, há sempre uma explicação ilusoriamente simples para a formação do Universo e a de Pedro Bandeira e Xavier Almeida foge de desejos eróticos ou visões grandiosas de um mundo por vir, elegendo como gatilho da criação o vazio cósmico onde flutua uma divindade aborrecida. Ao tédio, portanto, deveríamos a nossa origem e essa proposta não é simples ironia ou comentário blasé a tentar dar voz a um início de milénio que sabe a apocalipse.

Numa banda desenhada a preto e branco, onde cabem sequências que lembram livros de Ciências, grandes planos de cidades e olhares atravessados pelo microscópio, não é tanto a defesa de uma teoria cosmogónica que ocupa a dupla de autores, mas antes o estabelecimento de uma narrativa circular que simultaneamente aponta à origem e ilumina o final, afirmando ambos os pontos como referências estáveis num eterno recomeço. O Universo começa com o tédio divino, que é também ausência de corpo e de materialidade, e terminará da mesma maneira. Pelo meio, há um processo evolutivo que vai eliminando a matéria em favor da sua ausência, cérebros que parecem dominar os corpos, pensamentos assumindo o espaço que antes pertencia apenas às funções biológicas, máquinas em inter-face com cérebros e corpos até que a carne, o sangue e os ossos já não são relevantes. Sem matéria, voltamos ao caldo cosmogónico onde nada há, a não ser o tédio de um qualquer deus.

Essa é parte da história que se narra em O Fim É Igual ao Princípio. Das partículas nascem estrelas e planetas, em alguns lugares desenvolvem-se organismos, células que começam solitárias e depois se agrupam, seres que vão adaptando o seu corpo ao longo de gerações a outros ambientes, seres que a dada altura são humanos. Habitualmente, a história pára aqui, centrados que estamos na nossa existência enquanto corolário da evolução, mas o tempo persiste em passar. Quando o foco do processo evolutivo se afasta das mudanças bio-físicas e se foca no progresso civilizacional, com casas, carros, comida cada vez mais sintetizada, ecrãs e armazenamento de dados, sobressai um comentário político, ou melhor dito, um olhar político, já que esta história descreve mais do que comenta. Não há moralismo na narrativa do nosso perpétuo recomeço, apenas constatação, mesmo que o que se constata cruze factos científicos com hipóteses narrativas.

Se a cosmogonia narra o princípio dos tempos e a escatologia se dedica a narrar o seu fim, o que os autores deste livro criaram foi um outro exercício narrativo total, onde princípio e fim se encontram perpetuamente, mais próximo de outras tradições filosófico-religiosas do que da estrutura que define as chamadas religiões do Livro (onde, por proximidade geográfica e caldo cultural, não deixamos de nos situar, bem como à nossa leitura). Assim sendo, talvez haja, afinal, uma moral nesta narrativa, não no sentido judicatório, mas no sentido etimológico de “moral”, ou seja, aquilo que aprendemos a partir de uma história. Nesse sentido, se aqui não há belas imagens de um começo e tenebrosos sustos que anunciam um final, haverá algo parecido com uma condenação, a pedra de Sísifo a fazer-se matéria de onde tudo sai e aonde tudo regressa: talvez a nossa maldição comum não seja, portanto, o apocalipse, e antes a impossibilidade de travar o tempo. Entretidos com o progresso e a promessa de uma qualquer eternidade, esquecemo-nos de decidir o quanto desejamos ou repudiamos essa promessa. De qualquer forma, é uma decisão que nenhum peso teria. Continuemos.

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