Saramaguiana
por José Saramago 30 Outubro 2023
© Frederic Raevns, 2006

O estado de graça da leitura

No dia 19 de maio de 1999, José Saramago proferiu, na Feira do Livro de Granada, na Espanha, a conferência intitulada O livro nosso de cada dia. Fragmentos desse discurso foram publicados recentemente pela primeira vez em português na revista Palavra, do SESC, no Brasil. A Blimunda traz agora aos leitores portugueses as palavras ditas pelo autor de Que Farei com Este Livro?   

Vou agora expor-vos uma teoria que tenho acerca da leitura que não é muito popular, inclusive poderia dizer-se que não é politicamente correta. E esta é que a leitura não é obrigatória. Ler não é obrigatório. Posso perguntar o seguinte a um rapaz: “Olha lá, e tu, porque não lês? Não gostas de ler?” E ele poderá responder: “Não, não gosto.” E eu dir-lhe-ei: “Não te dás conta daquilo que estás a perder?” Mas imaginemos que este rapaz é um mergulhador e que contrapõe: “E o senhor, não se dá conta daquilo que está a perder por não mergulhar?” E tem razão. Quer isto dizer que não devemos ler? Não, não quero dizer isto. O que quero dizer é que não vale a pena inventar desculpas, explicações para algo que é muito claro desde que existe o livro. A leitura não é nenhuma obrigação. A leitura é uma devoção, é uma paixão, é um amor.

Quando um leitor não tem meios para comprar um livro, onde pode ir? A uma biblioteca. Com os livros acontece algo que não acontece com os carros. Quando se quer ter um carro, tem de se comprar um, mas sempre que se quer ler um livro não há necessidade de o comprar, e por isso a desculpa de que os livros são caros não serve. Claro, é preciso ir a uma biblioteca, é preciso ter tempo suficiente disponível para ir à biblioteca. Mas isso pode remediar-se. Não é preciso ir à biblioteca todos os dias. Porventura, uma vez por semana, de duas em duas semanas, uma pessoa desloca-se até lá e leva para casa os livros que quiser. Portanto, quem quer ler, lê.  Existem ainda os alfarrabistas, onde se podem comprar livros extraordinário em troca de pouco dinheiro. Pelo menos metade dos meus livros foram comprados em alfarrabistas. Recomendo que experimentem o prazer que dá entrar numa destas livrarias, sentir o cheiro dos livros antigos, do papel amarelo, da poeira do tempo… E descobrir aquilo que procurávamos há anos e anos.

Será que se está a fazer tudo o que se pode para promover a leitura? Isso é outro assunto. O problema começa com a escola. Detenhamo-nos agora na reflexão de umas tantas questões. A escola ensina a amar o livro? É bastante duvidoso. A escola ensina a compreender o que está nos livros? Creio que não. O problema da massificação do ensino criou inúmeras dificuldades, acrescidas à tarefa já em si mesma complicada de ensinar.

Porém, não é acerca da massificação do ensino que eu quero falar, mas antes da evidência de que o livro existe e o leitor também. Como se poderão aproximar um do outro? Eu acredito que a escola tem uma importância fundamental. É necessário que os professores saibam valorizar o livro. Mas não apenas o livro que é necessário para ensinar a Matemática, a Geografia ou a História. Há outros livros.

Porque é que os leitores de um livro que se conhecem e vivem mais ou menos próximos uns dos outros não se reúnem para falar desse livro depois de o terem lido? Porque é que a leitura tem sempre de ser uma atividade solitária? Porque não haver um intercâmbio entre leitores e livros? Porque não falar de um livro que acabou de sair ou de um livro que faz parte da nossa cultura e da nossa educação sentimental? Isto seria realmente fomentar a leitura no próprio leitor, em vez de cair na ambição, porventura desmedida, de pôr toda a gente a ler. Pode transformar-se a leitura em algo diferente de um prazer solitário, que também é, e em primeira instância. Não proponho um sistema coletivista, mas sim a ação dinâmica que pressupõe o intercâmbio de ideias ou opiniões sobre o livro. Porque o livro é algo mais do que um objeto que se arruma na prateleira para mão mais se regressar a ele, o livro é uma plataforma de comunicação entre pessoas.

 É verdade que entre os leitores acontece algo mágico – e não voltarei a usar o plural leitores, mas sim leitor, porque cada leitor é diferente, porque ninguém é plural. No espírito de um menino ou de uma menina nasce de imediato e naturalmente o gosto de ler. E não se sabe porquê. Ninguém poderá saber porquê. Pode nascer no seio de uma família que não sabe ler. Pode não ter em casa um único livro. E, mesmo assim, gostar de ler. Onde está o segredo desse menino ou dessa menina? O que pretendo dizer é que há pessoas para cada livro. Mesmo antes de conhecer o conteúdo de um determinado livro, esse livro é já importante para determinadas pessoas.

Esta é, na minha opinião, a pergunta – o que é o livro? Pois o livro é um lugar onde vamos encontrar, sobretudo, uma sensibilidade. Vamos encontrar uma visão da vida, uma perceção do que é o nosso destino – viver -, da nossa relação com os outros, a explicação de um sentimento, o enunciado de uma teoria que passa pela sensibilidade e pela formação do autor e que será recebido de forma diferente por cada leitor. Vamos encontrar isto e muito mais. Contrariamente ao que se pensa, a primeira leitura de um livro não o esgota. Um dos equívocos mais graves em que podemos incorrer é dizer: “Já o li, agora já está.” Mas como, como é que já está? Como é que já o leu? É a mesma coisa que entrar numa casa, passar de uma divisão para outra, sair logo pela porta fora e dizer “Já conheço esta casa”. Não, é preciso viver nela, é preciso pelo menos passar mais tempo dentro do seu espaço para descobrir nela todos os detalhes que lhe conferem a sua singularidade. Um livro é igual a uma casa, nova a cada olhar, um livro é um continente.

Um livro nunca se esgota. Nem mesmo o pior dos livros se esgota. E as palavras que por vezes usamos mal, as que dizemos sem nos darmos conta do que elas são, do que elas dizem, do que elas falam, no livro, estão sempre à nossa espera. Esperam pela leitura, por um olhar, esperam que as decifremos, esperam sobretudo porque participamos na vida. Entendam-me: viver não é sobreviver como quem sofre um pena. Esta participação pode e deve ser um ato de amor, tal como a leitura. E é por esta razão que afirmo que, em primeiro lugar, é preciso despertar o amor pela leitura, o amor por esse gesto tão natural que é segurar um livro entre as mãos. Contudo, não se pode impor a toda a gente a leitura como se fosse uma obrigação. Não o é.

As expressões mais completas do pensamento humano encontram-se nos livros. Há pessoas a quem o livro não lhes interessa nada. A estas pessoas dir-lhes-ia: “De acordo, que lhes corra bem a vida.” Mas, para outras, o livro é algo que não pode ser substituído.

Há um momento que é verdadeiramente extraordinário na leitura: quando a interrompemos. Quando alguém está a ler o livro com as folhas abertas, mas de repente tira os olhos do livro e olha para a frente. A leitura suspende-se, algo aconteceu, algo mágico: é como se a leitura quisesse transportar o leitor para outro universo. E então que o leitor, ao tirar os olhos da página, está a olhar para si mesmo. Isto é o que se dá na relação entre o leitor e o livro, é o estado de graça que propicia a leitura.