Saramaguiana
por Rafael Gallo 18 Novembro 2022
foto © Daniel Mordzinski
“Ninguém lho tira”

Discurso de Rafael Gallo ao receber o Prémio Literário José Saramago 2022

No dia 14 de novembro, no Centro Cultural de Belém, foi realizada a cerimónia de entrega do Prémio Literário José Saramago, distinção atribuída pela Fundação Círculo de Leitores. O vencedor desta 12ª edição foi o escritor brasileiro Rafael Gallo, autor do romance “Dor Fantasma”, que será publicado em breve em todos os países lusófonos. Ao receber o prémio, Gallo leu o discurso que a revista Blimunda agora publica1

Boa tarde. 

O meu jeito de falar vai soar um pouco diferente aqui, porque temos o mesmo idioma, mas as línguas têm suas singularidades, suas melodias próprias. Sei que, enquanto falo português, ao mesmo tempo eu estou falando brasileiro. 

E isso é uma citação proposital: “eu estou falando brasileiro”. Foi uma das frases proferidas por um homem, um imigrante do Haiti, que no início da pandemia de covid-19 se colocou diante daquele que, infelizmente e tragicamente, foi presidente do meu país nos últimos anos. Embora tenha protagonizado um momento tão importante, o nome desse homem não ficou registrado.

Trago esse gesto aqui porque, além de sua importância política, tem muita relação com aspectos da literatura que considero valiosos. Testemunhá-lo, para mim, teve um efeito tocante como o de quando leio um livro especial.

Ali havia, em primeiro lugar, coragem. Um ato solitário de desafio aos poderes e normas estabelecidos. Algo assim provoca uma espécie de abertura, uma possibilidade de entendimento diverso do mundo, tal qual ele se apresenta e se impõe. E havia uma mensagem, que aquele homem recebeu de outros e levou adiante. Eu fui só um dos muitos a quem essa mensagem foi dada, e agora posso oferecê-la também. Por fim, tudo isso se deu através do uso das palavras e, em especial, um uso fora do comum, o que sempre dá outra potência à palavra. Por exemplo, aquele governo permanecia no presente, mas o homem que o desafiou já o remetia ao passado, quando disse: “acabou”.   

E hoje, 2 anos depois, finalmente todos podemos dizer por certo: acabou. 

O que também se relaciona com a literatura, para mim. Não que haja um poder profético no texto literário, ou naquele imigrante haitiano. Eu queria muito saber o nome dele, a história dele. Nessa lacuna, de certa forma, vejo uma falta de literatura. Mas para retomar: nem a literatura nem aquele homem prevêem o futuro, trata-se mais de um olhar atento para o que nos cerca e já está a acontecer antes de se concretizar. Feito compreender que vai chover em breve, quando se lê as nuvens.  

E é no papel de leitor que busco me colocar, sempre que preciso pensar sobre alguma questão séria acerca da literatura. Um leitor que calha de escrever, mas cuja relação primordial com os livros é a da leitura. Bom, esse prêmio, o José Saramago, para mim é uma questão seríssima acerca da literatura. Então, vou apelar ao meu lado leitor para falar dele. Há alguns anos, fiz uma lista com meus 10 livros preferidos na vida. Três deles foram vencedores deste prêmio. Outro foi escrito, posteriormente, por um dos autores que também o ganhou. E, claro, como na lista de favoritos de muita gente, havia também um romance do grande José Saramago. Ou seja, dos livros mais adorados da minha vida metade está relacionada com este prêmio. Com este momento. Acredito que há muitos leitores como eu aqui, então devem imaginar o quanto significa poder estar nesse lugar. O ser humano é um animal de vinculação; desde os primeiros dias nossa sobrevivência está ligada ao outro, depende da formação de laços. Ao longo da vida, passamos a conseguir cuidar de nossas necessidades básicas, mas continuamos a buscar pertencimento. 

Nesse campo, não é exagero dizer que ser um dos contemplados com o Prêmio José Saramago é não só a oportunidade, mas também o elo dos sonhos. Ainda me parece inacreditável que eu esteja mesmo aqui. Eu já havia concorrido antes, em 2017. Como devem saber, o prêmio era voltado para romances publicados, de autores com idade até 35 anos. Eu tinha exatamente 35 anos e inscrevi meu único romance publicado. Foi difícil lidar com a ideia de que nunca mais poderia tentar o prêmio, que era o que eu mais queria. Então foi aberto o edital mais recente. Eu estava com 40 anos e, quanto a romances, tinha apenas um manuscrito que não tinha conseguido publicar. As duas grandes mudanças desse edital: poderiam concorrer apenas manuscritos inéditos, e a idade limite passava a 40 anos. Não é recomendável contar com isso, mas às vezes a vida dá uma última chance pela segunda vez.

Eu pensei tanto nesse prêmio, parecia tão perfeito, que a certa altura me repreendia por me achar aos delírios. Quando recebi a ligação da sra. Guilhermina Gomes, para dizer que eu havia ganhado, caí de joelhos no chão. Devem saber que para um ateu, cair de joelhos não é qualquer coisa. Chorei, ri e falei muitas coisas sem sentido, por conta das quais, primeiro, peço desculpas à sra. Guilhermina e, segundo, assumi que para hoje seria melhor ter um discurso escrito. 

Mas em meio a esses meus disparates, houve uma frase dita por ela, que embora possa soar trivial, foi muito importante para mim. Ela disse, para me convencer que o prêmio era mesmo meu: “Ninguém lho tira”. Quero guardar essas palavras – penso até em fazer uma tatuagem com elas – por conta do sentido que ressoaram em mim. Preciso me lembrar de que certas coisas não podem ser tiradas da gente. Nem pelos outros, nem por nós mesmos. 

Comecei falando mais do Brasil do que de mim. Isso, em parte, por termos lá um momento importante de reconstrução agora. Mas também há um paralelo que vejo, por conta de uma reconstrução pessoal, minha. Creio que todas essas ideias – a daquele imigrante haitiano, a do período atual no Brasil, a da frase de “ninguém lho tira”, e as relativas a meu caminho com os livros – tudo isso soma-se nesse tema, o da reconstrução. Fiquem tranquilos, não vou dar conselhos motivacionais. Aliás, detesto discurso de vencedor enquanto estilo de retórica. Sei que muitos esforços não encontram recompensa equivalente, que muitas pessoas merecem mais ou menos do que obtêm, e que muitos escritores e escritoras que se inscreveram poderiam estar aqui, nesse pódio, não fossem algumas casualidades. Sempre há derrotas, desigualdades, incongruências e retrocessos com as quais teremos de lidar, independente de nossas melhores iniciativas. Aliás, O século XXI me parece uma enorme confirmação desses movimentos, que podem se direcionar mais ao retrocesso do que ao progresso. O que se mostra vital é recomeçar o que se desencaminhou, consertar o que se quebrou, refazer o que caiu em erro. De novo e de novo e de novo. Lembrar daquilo que, mesmo quando parece perdido, ninguém lho tira. 

Como um leitor que também escreve, mas que sentia ter se perdido da escrita, quero dizer que este prêmio será para sempre como uma pedra sobre a qual erguer uma nova parte de mim. À Fundação José Saramago, em especial a Pílar del Rio; à Fundação Círculo de leitores, em especial, a Guilhermina Gomes, e aos demais membros do júri, de quem sou leitor e admirador: José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, Gonçalo Tavares, João Tordo, Nélida Piñon e Bruno Vieira Amaral (tão generoso na apresentação), quero deixar meu agradecimento mais profundo. E também a uma pessoa especial, que está aqui comigo e – como diz uma frase do livro, Dor fantasma – aqui é onde sempre se está. Aquela que, dentre todos neste auditório, é quem mais sabe sobre essa história e é a mulher que eu amo: Babi. 

Não existe uma palavra que daria conta de tanta gratidão. Por falta dela, vou fazer o que qualquer um que escreve faz: colocar-lhes aqui apenas uma palavra, enquanto apelo para a vossa imaginação, para que a ampliem o quanto puderem. Eis a palavra: obrigado.

1 Nota da redação: O escritor mencionou um episódio que teve ampla repercussão no Brasil. Em março de 2020, quando o presidente do país, Jair Bolsonaro, tratava de minimizar a gravidade da pandemia de covid-19, um anônimo interpelou-o na saída de um acto para dizer que o seu governo havia acabado e que ele “devia desistir” da presidência. Bolsonaro respondeu que não entendia o que o homem estava a dizer e ouviu como resposta: “Você está entendendo bem, estou falando brasileiro. Bolsonaro, acabou”. 

foto © Daniel Mordzinski