
Misericórdia!
Misericórdia! foi a alcunha com a qual batizamos o veículo da minha amada progenitora há alguns anos. Poderia soar estranho um nome assim grafado com um ponto de exclamação, mas garanto que ainda é pouco para a proeza da engenharia automobilística que tal máquina representa. Arriscaria dizer que o Misericórdia! é a representação simbólica de um novo tempo. Ex-líbris de uma era.
O veículo é um Logan. O modelo marcou a presença da Dacia no Brasil durante umas décadas. Daí que a data de nascimento do sedan de mamãe permaneça um enigma familiar. Branquinho e ainda assim desbotado, com mais personalidade do que funcionalidade, mami trafega todos os dias com o seu automóvel pelas ruas de Araruama desde que se mudou para a Região dos Lagos, no estado do Rio de Janeiro, fiando-se sempre nas palavras do seu mecânico:“Ó, Dona Luci, trocar esse carrinho pra quê? Olha aí, depois de tanto tempo, continua uma máquina”.
Estou convicta de que o mecânico e a minha mãe professam a mesma fé. Afirmam que o carro tem alma. Eu já acredito que uma entidade habita o carburador, dada a frequência das possessões que o fazem engasgar e desfalecer de repente. Mas quem somos nós? Meros passageiros esporádicos.
Há muito para contar sobre esse encanto de carro. Começando pela decoração, faço notar as tolhas de praia nos bancos para não estragar os estofos. Logo a seguir, temos um bichinho de pelúcia ressignificado, que pertenceu aos netos da minha mãe, pendurado no espelho retrovisor como se de um amuleto se tratasse (nem ousem tocar). Depois a buzina que, ao contrário do limpa para-brisas, é tímida. Enquanto o limpador trabalha coreografando uma dança contemporânea, a buzina é discreta. Um patinho rouco.
E o rádio, então? Ah, o rádio! O rádio é um monumento à tecnologia retrô. Não, meus caros amigos, aqui não entra IA. Xô, Tesla! Sintonizando apenas numa estação que ora transmite louvores, ora anúncios com promoções de pneus usados, o Misericórdia! é quem decide em que momento é hora de evangelizar. Sem aviso, o rádio se liga sozinho. Aleluia, irmão?
Misericórdia! também tem os seus caprichos. Por exemplo: só quer combustível de uma determinada marca. Se acaso colocamos outra, o ponteiro do marcador do tanque dá indicações erradas. Não raras vezes, paramos para abastecer (pois o marcador indica que o combustível está na reserva), colocamos gasolina e o tanque transborda. Noutras ocasiões, indica que estamos com o tanque cheio quando, na verdade, o carro está andando só no cheiro da gasolina. E nem adianta reclamar porque a proprietária da máquina, sempre ciosa, não admite nenhuma insinuação relativa ao temperamento do seu estimado automóvel.
Nos últimos dias, com a nossa presença no Rio de Janeiro-Misericórdia! tem frequentado as ruas de Ipanema, Leblon, Copacabana e, obviamente, as aves daqui não gorjeiam como as Araruama. Basta estacionarmos em baixo de uma árvore que os pombos, uns seres que não respeitam nada, largam uns “presentinhos” pela carcaça, digo fuselagem, do carrito de mami.
Dona Luci fica revoltada, e convenhamos, com razão. Não sendo mulher que se deixa intimidar por criaturas aladas de pequeno porte, lá decidi dar um trato no Misericórdia! antes de mais uma emocionante saída familiar. Imaginem vocês se mamãe deixaria o seu garotão pavonear-se pelos pontos turísticos da cidade numa figura daquelas. Lá se armou com um balde de água, detergente e uma escova velha. Claro que isso significou que o carro ficou cheio de manchas de sabão porque o “enxaguar” consistiu em baldes jogados com mais vontade do que precisão. Por fim Misericórdia! estava limpinho e antes as manchas de sabão do que dejetos animais. Mamãe, sempre otimista, estava pronta para mais um embalo com o seu possante.
As aventuras com Misericórdia! são sempre educativas. Foi com ele que reaprendemos o significado de paciência. Como quando estávamos parados no meio de uma estrada, como um sol de lascar, e ele simplesmente decidiu descansar. Mamãe disse: “É só orar.” “Sou filha do Dele e nada me faltará”. Ao que meu marido completou: “Desçam que vamos empurrar.” As pessoas juntaram-se para ajudar e, claro, para oferecerem as suas opiniões técnicas e contar as suas histórias sobre o Misericórdia! de cada um.
Por mais que o carro seja um desafio diário, é também um milagre. Todas as viagens são uma celebração da sobrevivência, um exemplo em movimento (ou não) da chamada economia circular e outras cositas. E assim seguimos com o nosso estimado Misericórdia! pela Cidade Maravilhosa, onde cada solavanco é um lembrete de que na vida, como naquele carrinho, a melhor estratégia é segurar firme, se prevenir do que for possível, rir dos imprevistos e, claro, quando tudo parecer perdido, encher o pulmão e exclamar: “MISERICÓRDIA!”.