
Longa vida às Oleandras
Uma nova colecção de livros propõe dar a ler narrativas onde a imagem tem um peso considerável e o registo autobiográfico assume o papel central.
Fazer nascer uma colecção de livros é um gesto carregado de futuro, pouco importa se a colecção vai durar muitos ou poucos anos e se vai compor-se de muitos ou poucos volumes. Oleandras é o nome de uma nova colecção de livros, inserida no selo editorial Noturno-Azul, do artista visual António Jorge Gonçalves. Trata-se, como se lê na página do editor, de um espaço bibliográfico que quer acolher «narrativas autobiográficas de autoras que usam a imagem como forma primordial de escrita. O crescimento, a constituição de identidade e a procura de um lugar no mundo são temas centrais destas narrativas reais contadas na primeira pessoa.» Os dois livros que inauguram estas Oleandras já aí estão, o primeiro assinado por Liliana Lourenço, o segundo por Ana Biscaia.
Vai, mas volta
Vai, mas volta, de Liliana Lourenço, é uma narrativa de memória, um discurso feito de muitos elementos (texto e imagem, desde logo) que encena a vida da narradora a partir do seu passado e da sua infância. Nessa encenação, os textos estruturam-se como poemas narrativos, tirando partido do verso livre – sem rima nem métrica fixa, mas ainda assim cumprindo um ritmo e procurando uma harmonia – e estendendo-se, em formatos mais longos ou mais breves, conforme os momentos e a necessidade. Não há aqui adornos ou excessos, apenas as palavras necessárias, por vezes numa brevidade quase seca, mas não desprovida de emoção, apenas assumindo que a contenção verbal pode ter significâncias amplas e os não-ditos também são profundamente eloquentes («Não pelo que ainda é, mas pelo futuro espaço em branco.» pg. 44 ), outras vezes ampliando a narrativa com detalhes, como quando se conta a mudança de escola da narradora ou outros episódios devidamente situados num tempo e num lugar. Frente ao texto estão as imagens, o outro elemento desta espécie de hélice que põe em marcha a narrativa de Vai, mas volta.
Quanto às imagens, é a figuração humana que as domina, composta por crianças, mulheres e homens que quase sempre assumimos identificarem-se com os respectivos referentes no texto. Para além dessa referência que podemos ler como representativa, outros sentidos se acumulam, com muitas das figuras contendo um tracejado que lembra os bonecos de papel bidimensionais (aqueles que se recortavam e que podiam vestir-se com diferentes roupas e adereços, também eles de papel) e com as faces marcadas por uma mancha vermelha, a marca de vida a contrastar com o tracejado, fazendo destas figuras simultaneamente vivas, no sentido pleno de terem um corpo, carne, ossos, pele e órgãos, e planas, no sentido de serem evocações, partes de uma história que agora se conta.

É no jogo de constante troca e acrescento de sentidos entre ambos os elementos, texto e imagem, que se constrói este livro, abrindo a narrativa para um passado que, percebemos à medida que as páginas se sucedem, não é assunto encerrado. Nunca é, mas Liliana Lourenço afirma-o neste processo de contar uma história, várias, na verdade, um novelo onde memórias de infância se cruzam com coisas ditas por outras pessoas, episódios expectáveis na vida de uma criança ao lado de outros que se desejaria que não acontecessem, como a fome, a discriminação e, sobretudo, a morte – a que se vai insinuando como descoberta dura, em qualquer infância, mas igualmente a morte concreta de um irmão, marca indelével a atravessar textos e imagens, à semelhança do modo como atravessa a própria vida de quem lhe sobrevive.

O registo que se cria neste diálogo intenso entre texto e imagem é o da memória, da sua evocação, assumindo a fragmentação como característica inerente e navegando livremente pela certeza de uma reconstrução permanente – é essa, aliás, a característica fundamental da memória, por mais que recordemos, ou queiramos recordar, todos os detalhes do que aconteceu. Vai, mas volta assume-se em muitas páginas como rememoração de um passado e dos seus episódios, mas é sobretudo uma deambulação pelo pântano que a memória nunca deixa de ser. Nessa caminhada sempre fragmentada e cheia de interrogações, o livro de Liliana Lourenço acaba por construir uma certeza: a de que o passado não existe enquanto assunto arrumado, configurando-se sempre como matéria permanentemente presente, por ser nela que existimos todos os dias e por ser a partir dela que nos vamos definindo.

Amanhã
Em Amanhã, Ana Biscaia recorre a registos diversos para compor uma narrativa que se assume diarística, desde logo pelas referências de datas nas entradas escritas. Também neste livro texto e imagem são ferramentas essenciais, desdobradas numa grande variedade de abordagens. Aos textos escritos em letra de imprensa juntam-se desenhos soltos, sequências de desenhos, pranchas de banda desenhada, outros materiais escritos, mas em modo manual, numa caligrafia apressada – como nas listas que por vezes surgem – ou mais cuidada. A pluralidade de registos não afecta de modo nenhum a coerência da narrativa, pelo contrário. Nessa alternância de textos devidamente editados antes de paginados e de outros manuscritos e até rasurados, de imagens cuidadosamente preparadas e outras apenas esboçadas, está a linha que conduz a leitura, assumindo um discurso simultaneamente único, porque subjectivo e autoral, e universalmente reconhecível, porque a sobreposição, a fragmentação e a atomização são características do pensamento, mesmo quando preferimos acreditar que tudo controlamos e podemos organizar.

Neste diário, Ana Biscaia partilha memórias de infância, angústias presentes (onde não faltam referências sociais e políticas, da crise da habitação à precariedade do trabalho, passando pela demissão do primeiro-ministro e das eleições que se lhe seguiram, há um ano), fragmentos organizados, que podemos ler como pequenas narrativas quotidianas, e outros mais dispersos, onde vamos estabelecendo uma linha de leitura que nos coloca, até onde isso é possível, no centro das sinapses da narradora. De certo modo, Amanhã configura-se como uma corrente de consciência que não passa apenas pela escrita ou por um modo específico de narrar, mas igualmente pela disposição dos diferentes registos que compõem este livro, entre textos, bandas desenhadas, imagens aparentemente soltas, pedaços de cadernos onde se desenhou ou escreveu para mais tarde recordar, mesmo que nunca mais lá se tenha voltado. A disposição e a sequencialização de todos os materiais configura ela própria esse movimento que podemos aproximar, sem medo de desvios teóricos, da dita corrente de consciência, um deambular sem freio pelo que vai atravessando uma mente ao longo dos dias, contas para pagar, um pai no hospital, os ecos da infância infiltrando-se nos gestos presentes. E tudo isto, sobrepondo passado e presente em fragmentos sucessivos, acaba por apontar a leitura a esse futuro que o título do livro convoca e que se atravessa nas suas páginas, não como antecipação, mas antes como inquietação, a da dúvida, mas também a da insegurança.

Numa altura em que a palavra política cria tantos anticorpos, sugerindo maquinações e interesses sempre inalcançáveis, pode dizer-se que Amanhã é um livro profundamente político, não porque inclua referências ao dinheiro que não chega ao fim do mês, ou às eleições (que inclui), mas porque a sua matéria é o modo como atravessamos a vida e o que dela tentamos fazer, sempre com uma tremenda consciência de que não existimos a solo, mas em relação – seja com as pessoas que nos rodeiam e com as outras, entretanto feitas memórias, que nos povoam o pensamento, seja com quem não permite que o ordenado chegue ao fim do mês. É nessa teia, sempre apresentada na sua complexidade e sem ceder a maniqueísmos, que a narrativa se joga. O livro de Ana Biscaia, mostrando todas as suas costuras, até mesmo a procrastinação que vai empurrando a sua realização (na página 119, no diálogo entre duas personagens numa prancha de banda desenhada, uma diz – «Então, pá,? Não desenhas? Tens coisas para dizer. Bora lá.» E a outra responde «– Já vou…»), é um extraordinário registo do tempo, não apenas deste tempo que agora partilhamos, mas do tempo enquanto matéria que habitamos, e da sua consciência.

Uma nota para a edição e a vertente material destes dois livros, Vai, mas volta e Amanhã, revelando não apenas um cuidado extremo na escolha dos materiais e dos acabamentos, mas igualmente no design e nos pequenos pormenores gráficos. Para Outubro, prevê-se a chegada de mais dois volumes das Oleandras, Assis Bueno 37, de Paula Delecave e Um corpo que se desfaz, de Rachel Caiano. Serão, nessa altura, quatro títulos, assinados pelas mesmas autoras que integraram a exposição com o nome da colecção que passou por Torres Vedras, reunindo os livros-objecto que estiveram na origem das Oleandras. Depois, é esperar para conhecer o que se seguirá, a fazer crescer na estante esta nova colecção.