
Livros pela Palestina: crónica de um gesto que se desdobrou em muitos
Uma banca à margem da Feira do Livro de Lisboa deu origem a um outro momento de venda de livros, sem pavilhões nem sessões de autógrafos, em solidariedade com a Palestina.
Começou com uma banca improvisada no espaço da Feira do Livro de Lisboa, vendendo livros e outras publicações em solidariedade com a Palestina, e prosseguiu com um abaixo-assinado dirigido à Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), subscrito por alguns editores, autores, tradutores e amigos. O que se pedia era que esta instituição tomasse posição sobre o genocídio em Gaza e se mobilizasse, de algum modo, em acções de solidariedade. Na programação da 95ª Feira do Livro houve algumas apresentações de livros e sessões de autógrafos em torno da Palestina, como as protagonizadas por Alexandra Lucas Coelho ou Shahd Wadi, no espaço da Caminho/Leya, mas não havia momentos de debate sobre o assunto que juntassem diversas pessoas num painel de discussão e, sobretudo, momentos programados pela própria APEL, o que levou várias pessoas a questionarem-se sobre se não devia ser este, um espaço que exalta a leitura, o pensamento crítico, a consciência, o espaço por excelência para tal acontecer.
Na sequência desse abaixo-assinado, a APEL reuniu-se com algumas das pessoas subscritoras e mostrou-se disponível para acolher qualquer evento que pudesse ser marcado tão em cima da hora – estávamos, já, nos últimos dias da Feira – encontrando, para isso, um “furo” na programação de alguma das várias praças de debate que se espalham pelo Parque Eduardo VII nesta altura do ano. O “furo” lá estava, no último dia da Feira do Livro, e apesar de anunciada tão em cima da hora, a conversa que juntou sete pessoas em torno da Palestina foi, descontadas as sessões de autógrafos com bestsellers, um dos acontecimentos que mais gente juntou nesta edição da Feira.

No palco, com moderação de Ana Maria Pereirinha, tradutora e há muito ligada aos livros e à edição, reuniram-se João Figueira, da editora Ymago, Shahd Wadi, escritora que recentemente publicou Chuva de Jasmim (edição da Caminho), Sofia Mendonça, integrante da Global March To Gaza, Carlos Almeida, em representação do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente, Julieta Almeida, dos Parents for Peace, e Lara Aladino, membro do colectivo Acções pela libertação da Palestina. O tempo era curto, como sempre é nestas conversas da Feira do Livro, cronometradas até aos quarenta e cinco, cinquenta minutos e logo cedendo a vez ao ocupante seguinte do auditório. Ainda assim, todas as pessoas tiveram algum tempo para falar, denunciando as atrocidades que acontecem diariamente em Gaza, contextualizando historicamente o que agora está a acontecer, apelando à mobilização para pressionar governos e instituições internacionais no sentido de se posicionarem, desde logo, e também de tentarem travar o genocídio por todos os meios.

As cadeiras do pequeno auditório da Praça Azul não chegaram para o público que apareceu e que se espalhou, então, pelas escadas e pelo passeio junto ao palco. Quando terminou o tempo disponível, as conversas continuaram, agora sem microfone, com vários grupos a manterem o debate, a trocarem notícias recentes e, entre aqueles e aquelas que trabalham nalguma das muitas vertentes da edição de livros, combinando a entrega das doações para a venda solidária que nessa altura se preparava ainda com data incerta. Foi Rui Miguel Ribeiro, das Edições do Saguão, que anunciou essa segunda iniciativa nascida na Feira do Livro pouco antes do fim do debate: todas as editoras que quisessem juntar-se à causa poderiam entregar os seus livros manuseados, ou outros, nas bancas da Tigre de Papel ou das Edições do Saguão. A própria APEL ajudou, depois, a espalhar esta mensagem entre os participantes da Feira, que se preparavam, daí a umas horas, para desmontar as respectivas bancas e dar por encerrado o certame.
Livros e mensagens escondidas
À hora de encerramento da 95ª Feira do Livro de Lisboa, começaram a chegar os primeiros caixotes de livros doados por várias editoras para a venda solidária que reverterá a favor de organizações que trabalham directamente com a Palestina. As edições do Instituto Superior Técnico foram as primeiras a depositar as suas doações junto à banca das Edições do Saguão. Seguiram-se várias outras editoras e, de mais abaixo na Feira, iam chegando notícias que também a banca da Tigre de Papel já estava a receber livros. Enquanto Mariana Pinto dos Santos e Rui Miguel Ribeiro, das Edições do Saguão, recebiam os livros que iam chegando e arrumavam a sua própria banca para o fecho, uma folha dobrada ao meio surgiu dentro de um dos livros. Nessa folha, manuscrita, lia-se um nome e uma descrição: Khalid Mohammad Jamil Al-Za’anin, 7 anos de idade, assassinado em Gaza. No verso, a impressão de uma mão infantil a vermelho, um QrCode e a legenda, onde se lia «Feito por quem teve direito a ver as suas mãos crescerem». Acedendo ao QrCode com um telemóvel, o que surge no ecrã é um documento cheio de informação sobre a Palestina, desde endereços de organizações que têm apoiado as vítimas do genocídio a listas de responsáveis políticos a quem escrever a pedir contas da sua inacção. Não há referência à autoria desta acção, mas outros editores que se foram juntando na banca das Edições Saguão confirmaram ter encontrado folhas semelhantes no interior de alguns livros que tinham expostos nos escaparates, sempre com nomes de crianças assassinadas em Gaza. Não temos como saber a dimensão desta intervenção nem quem foram as pessoas responsáveis, mas talvez não importe muito, uma vez que a ideia seria focar-nos a atenção nestas crianças, mortas pelo exército israelita – entre tiros, bombas e privação de comida, água e assistência médica – , lembrando-lhe os nomes e, com isso, lembrando também que é preciso agir.
Apareceram mais braços para ajudar a carregar os caixotes de livros num carro trazido por Miguel Cardoso, escritor e tradutor, e o porta-bagagens não foi suficiente para acomodar tantas doações. Houve que ocupar os bancos, também, um bom sinal para a quantidade e a diversidade de livros que haverá para comprar nesta venda solidária, entretanto já agendada: será nos dias 4 e 5 de Julho, na Galeria Monumental, em Lisboa, e ainda que a lista de editoras participantes continue a crescer, fica o registo das que, até ao momento da publicação deste texto, se juntaram à acção:


Quem também se juntou foram as Cramol, que manifestaram a sua vontade de participar assim que souberam o que iria acontecer. No dia 5, Sábado, às 17 horas, as vozes deste grupo coral feminino escutar-se-ão no espaço da Galeria Monumental. Os livros lá estarão, disponíveis para serem trocados por donativos conscientes, e todo o dinheiro arrecadado nesta venda será entregue a associações que trabalham directamente com quem resiste na Palestina. O que começou com uma banca improvisada na Feira do Livro de Lisboa e já envolveu tantas pessoas será transformado em apoio directo a quem dele precisa. Fossem os governos e as instituições mundiais tão facilmente motiváveis para resolver aquilo que lhes cabe e talvez não estivesse a acontecer um genocídio que nos reserva, a nós que não estamos em Gaza, o lugar de testemunhas impotentes. E, ainda assim, não dispostas a ignorar, muito menos a esquecer.