Destaque Andreia Brites 11 Março 2021

Ler o Mundo nas páginas de Michèle Petit
Uma crónica de leitura

A primeira vez que me deparei com a expressão “Ler o Mundo” foi em 2009, na Conferência Internacional da Casa da Leitura “Formar Leitores para Ler o Mundo”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Ali ouvi Sandra Lee Beckett apresentar o conceito de Crossover e Maria Nikolajeva traçar paralelos entre J. K. Rowling, Philip Pulman e Enid Blyton. Tudo era muito novo para mim e Michèle Petit ainda não fazia parte da galeria de pensadores da leitura que viria a admirar. Mais de uma década passada, reencontro a expressão, tantas vezes defendida, no título do seu livro que agora a Kalandraka edita em português. E a minha crónica de leitura começa ali.

Antes de abrir

Ao longo de mais de duzentas páginas, Michèle Petit convoca o leitor para um encontro com o mundo através da leitura, traçando inúmeros paralelos entre a experiência subjetiva e o texto escrito. Para isso, partilha testemunhos seus e de muitos com quem trabalhou, relatos de lugares de conflito e pobreza, outros de vívidos patrimónios orais, familiares e comunitários. Relaciona-os com o lido, sempre num encadeamento em que ambos se alimentam com naturalidade.

Não é por isso de espantar que logo no título esta vossa leitora inicie o seu próprio percurso de invocação. Ao longo de inúmeros ateliers e clubes de leitura com turmas e grupos de adolescentes e crianças que realizei, tornou-se evidente que de nada lhes servirá ler sem terem ferramentas para relacionar o lido com a sua experiência, o seu entorno, aqueles que se podem ver refletidos no texto. Muitos dos leitores atuais são leitores de consumo, em que todo o processo se limita a associações simplistas baseadas em replicações lineares dos mesmos contextos diegéticos e emocionais. Se há livros maus, que em nada contribuem para alterar este panorama, é igualmente claro que se os leitores estiverem mais bem preparados, as relações que desenvolvem serão de outra ordem.

Evasão, descoberta e conhecimento do outro, imaginação, abertura de possibilidades: tudo isto nos oferece a leitura, sobretudo a literatura. Mas igualmente no-lo oferece o mundo, como a antropóloga e investigadora bem assinala: uma viagem, um quadro, uma música, um filme. Uma boa conversa.

O diálogo, especialmente o coletivo, enriquece esse sentido simbólico do contexto, entretece-o com a história e as histórias que nos precedem e nos acompanham, traz perspetivas impensadas por uns e óbvias para outros, cruza sensações, perceções, rejeições, até indiferenças.

“A este respeito, [Martha] Nussbaum não é ingénua. Não pensa que uma simples convivência com as obras seja suficiente para desenvolver a capacidade de se identificar com o outro e fazer bom uso dela no espaço público. É uma prática particular o que preconiza: um ensino em pequenos grupos, em que os alunos ou os estudantes possam debater entre eles e ter tempos lentos de discussão com os professores (que, nota ela, na Europa não são assim tão formados para isso); e obras que dêem conta da pluralidade das experiências e das culturas humanas.” (pp.56, 57)

Descobri que é tão importante dar a ler, mostrar livros, promover o seu acesso, como dialogar sobre eles e sair deles para dialogar sobre o mundo, regressando a eles. O que levo disso é a surpresa de mais de uma dezena de turmas que, no final dos clubes de leitura, vêm afirmando que nunca esperaram conversar tanto e sobre assuntos tão diversos a partir de um livro como, por exemplo, A Metamorfose (Franz Kafka). O papel do cuidador, a velhice, a identidade, a homossexualidade, a pena de morte, a crise de 2011 e a especulação bancária, o populismo, o amor incondicional foram alguns.

A palavra, o texto: apresentação e apropriação do mundo

Demos então início à leitura.

O primeiro capítulo é uma declaração de amor ao leitor, a assunção de um compromisso de que mediar leitura é, antes do mais, apresentar-lhe o mundo. Esse amor começa, deseja-se, na família.

“Apresento-te aqueles que te precederam e o mundo de onde vens, mas apresento-te também outros universos, para teres liberdade, para não ficares demasiado enfeudada aos teus antepassados. Dou-te canções e histórias que relembrarás para atravessar a noite, para não teres muito medo do escuro e das sombras. Para poderes, a pouco e pouco, ir passando sem mim, para te pensares como um pequeno ser distinto e depois elaborar as múltiplas separações que terás de enfrentar. Entrego-te pedacinhos de saber e ficções para seres capaz de simbolizar a ausência e de enfrentar, na medida do possível, as grandes questões humanas, os mistérios da vida e da morte, da diferença dos sexos, o medo do abandono, do desconhecido, o amor, a rivalidade. Para escreveres, entre as linhas lidas, a tua própria história.” (p.18)

É belo e acontece discretamente, de muitas formas. Numa história antes de adormecer, numa memória de infância partilhada, numa música, numa ilustração, numa lengalenga… Quando não acontece em família, em situações traumáticas ou de desajuste social, podem ser os mediadores a devolver, parcialmente que seja, uma experiência fundadora a estas pessoas expropriadas. Os livros e a narração oral, ouvida, brincada, partilhada, recuperam esses lugares recônditos que marcam os alicerces da identidade subjetiva, tanto quanto da liberdade. Michèle Petit partilha, a respeito, testemunhos de migrantes e de vítimas de conflito armado.

Se começa ainda no ventre, esta apresentação não se esgota nas primeiras palavras, sequer com o acesso e a descodificação do escrito. Dois capítulos à frente, a antropóloga refletirá sobre a palavra e o seu sentido sonoro. “(…)no princípio não existia o verbo, mas a voz. E o espanto, a intriga.”(p.75) O som e o seu efeito no bebé é, inicialmente, sensorial. Só depois começa a estabelecer associações de representação ou nomeação às palavras, quando inicia a sua fase deítica.

Significa isto que o valor da palavra é, na sua origem, outro que não o de um signo que permite estabelecer identificações.

A comunicação e a linguagem reproduzida, imitada, desviada, trazem desde logo sentimentos de espanto, de liberdade e de curiosidade que desbravam o mundo. O texto escrito e lido também se reflete neste contexto psíquico e linguístico.

Apresenta-se o mundo, apresenta-se a palavra e o leitor comunica. Neste processo também os referentes e os significados se desviam e se apropriam. Michèle Petit partilha duas histórias paradigmáticas, uma que lhe foi narrada pela educadora pela arte argentina Mirta Colángelo, sobre a experiência de uma mensagem numa garrafa e outra da sua própria infância, quando atirava flyers para a praia e se deliciava com o comportamento dos banhistas que os apanhavam.

“Lanço palavras para aqueles que me hão-de ouvir ou ler, na esperança de que apanhem algumas delas, enquanto outras ficarão na areia. Apropriar-se-ão daquelas que tocarem uma das suas memórias, que forem ao encontro de algo que os preocupa e talvez não tenham ainda encontrado forma. Roubar-me-ão palavras – pelo menos, assim o espero – e alterarão o sentido que eu pensava ter-lhes dado, farão livre uso delas. Tal como eu com as palavras que ouço ou leio. E se cada um de nós soubesse o que os outros fazem com o que lhes demos, ficaria bem surpreendido. A linguagem é feita assim, de extravios, de apropriações, de desvios.” (p.83)

Desvio da utilidade a caminho da experiência da fruição

Pergunta recorrente e mote para a evangelização leitora, “Para que serve ler?” serve de título ao segundo capítulo do livro. Não há mediador da leitura que não se tenha colocado esta questão, voluntariamente ou em resposta ao seu público. Muito rapidamente Michèle Petit renega o princípio de utilidade associado ao sucesso académico. Não por ser falso, que não o será, mas por ser um argumento artificial que desvirtua o real poder da leitura. Na mesma linha de pensamento, chama a atenção para o perigo do elogio do prazer. Tentar motivar a ler quem não teve nunca uma experiência de sucesso, melhor, quem não tem uma memória de reforço, de assombro, de conforto acerca da leitura, assumindo que ler é um êxtase pode ser comparável a ouvir alguém falar entusiasticamente de comida quando tivemos uma paragem de digestão.

Se a leitura me oferece o acesso ao outro, ao estranho, ao desconhecido, ao mesmo tempo que o aproxima de mim, se me permite encontrar lugares de proteção e de segurança, se me estende códigos que me permitirão dar um sentido narrativo à minha experiência e, do mesmo modo, me permite ouvir a experiência do outro, então a leitura é “uma exigência vital”.

Petit justifica cada argumento com relatos concretos, da medicina à psicologia, da literatura à filosofia. E, a dada altura, as memórias de leitura são convocadas como elementos essenciais neste processo de construção identitária, de subjetividade e de compreensão do mundo.

“Porque o tempo de leitura não se reduz ao tempo em que se voltam as páginas ou se ouve alguém ler em voz alta. A divagação e o sonho, a fantasia, as lembranças de uma leitura fazem parte dela.(…) Há todo um devir psíquico de certas histórias, imagens ou frases, largamente recompostas ou transfiguradas.(…) É por isso que, por vezes, ficamos desiludidos ao encontrar num texto uma passagem que nos havia marcado. De facto, não tínhamos gostado tanto dessas linhas quanto da ideia que nos ocorrera ou da recordação que havia surgido.” (pp.48-50)

O que fica muitas vezes da leitura é essa associação, essa narrativa que o leitor constrói em diálogo com o que lê, quando levanta os olhos do texto. Esse presente que se fixa num excerto que se sublinha, numa nota numa margem que mais tarde se reencontra e não se desvenda na mesma medida. O tempo transforma o leitor em personagem da própria leitura e isso é experiência frequente para todos os que lêem em continuidade ao longo da vida.

Tenho memória de vários livros que anotei freneticamente no final da adolescência e, mais ainda, do orgulho que sentia quando assentava uma ideia na margem de um texto como se de uma epifania se tratasse. E recordo igualmente uma sensação de vergonha quando, anos mais tarde, me confrontava involuntariamente com essa ingenuidade que elegia excertos e teses de vida de inequívoca banalidade. Porém, a evidência posterior dessa superficialidade não me roubaria nunca nem o deslumbramento do momento, nem todas as apropriações que se sucederam e multiplicaram. Estas são histórias de leitura, memórias passíveis de serem partilhadas com leitores e não leitores adolescentes. Não há quem não tenha sentido, a propósito deste ou doutro estímulo, esse impulso de pensamento e emoção. E o livro pode ser-lhe associado, a par de uma música de hip-hop, uma fotografia no instagram ou um vídeo no youtube.

O lugar dual

A mediação leitora implica, na maioria dos casos, a sociabilização em torno do acto ou da experiência de ler. Significa que transfere qualquer coisa da esfera do privado para um universo narrativo distinto. Nesse universo, todavia, tem de haver espaço para a viagem individual, ainda que simultânea para vários elementos do grupo, de regresso ao lugar inicial, e a outros para onde se viajou através da leitura. É aliás papel da mediação promover essas e outras viagens, abrindo novos caminhos pelo simbólico, pela polissemia, pelos referentes escondidos em sintaxes dissimuladas aos olhos dos menos treinados.

Michèle Petit descreve a noção de espaço transicional do psicanalista inglês Donald Winnicott, segundo a qual é através do espaço de segurança que a criança reconhece, e no qual encontra objetos dos quais se apropria na ausência da figura de referência, que vai criando a sua narrativa do mundo. O lúdico permite a reorganização do caos no espaço e dá-lhe uma forma de criação e imaginação artística. É esta a comparação que a antropóloga estabelece com a leitura.

“Dia após dia, a criatividade, o pensamento, o bem-estar talvez pressuponham que se encontrem aberturas para um longínquo temporal ou geográfico. Ora, se a ela nos entregarmos sem demasiados constrangimentos, o que encontramos na leitura é uma oscilação entre o próximo e o longínquo. Ler tem que ver com a liberdade de ir e vir, com a possibilidade de entrar nesse outro espaço, nessa outra cena, e de lá sair quando se quiser.(…)

“À sua maneira, muitos dos que fazem mediação de obras literárias ou artísticas, muitos leitores, parecem perseguir um objetivo semelhante. Procuram pontos de passagem para uma outra dimensão que muda o olhar sobre o real, algo de extraordinário na vida ordinária, um encontro que abre possibilidades, uma respiração, uma perspetiva diferente. Dia após dia, tentam arranjar ou preservar idas e vindas entre essa outra dimensão e a imersão nas atividades rotineiras.” (pp.116-120)

Assim se chega ao imaginário, pela viagem, pela transição, pela capacidade de narrar e voltar a narrar que a leitura potencia.

Ler envolve, ainda que com grande subtileza, uma recusa do sofrimento, uma forma de converter angústias, lutos e revoltas em matéria de questionamento, uma forma de alimentar insatisfações e buscas por outros lugares. E ainda encontrar no texto possibilidades desejadas mas não vividas, outros caminhos nunca concretizáveis no quotidiano, outras biografias paralelas.

As tais múltiplas vidas que se vivem ao ler literatura podem sempre abrir-se a desejos impossíveis tanto quanto à descoberta de novas possibilidades eventualmente concretizáveis.

Isto fez-me recordar Os Livros que devoraram o meu pai, de Afonso Cruz (Caminho) que é o paradigma da experiência de leitura: uma criança que procura o pai nas narrativas que este lera, interagindo com as personagens e recriando novas conexões entre clássicos da literatura. Este jogo de várias camadas propõe precisamente o exercício de deslocar a metáfora “entrar dentro do livro” para uma longuíssima paráfrase criativa.

Desse equilíbrio entre ficção e realidade brota uma maior capacidade para lidar com o quotidiano, com as alegrias e tristezas da vida, porque há sempre um faz de conta para onde fugir e onde nos podemos encontrar, e uma vida física onde também nos escondemos ou revelamos.

Transmissão, mediação e educação

Nos dois capítulos finais Michèle Petit centra-se sobretudo no papel da ação sobre o leitor. Se somos narrativas múltiplas, memórias reconstruídas seletivamente, ficções impossíveis, desejos virtuais, certo é que não o somos todos na mesma medida. Não apenas por diferenças identitárias ou subjetivas mas também por questões de acesso. É factual e assenta em dados estatísticos, que o número de leitores está a decrescer, nomeadamente entre aqueles que liam mais, sobretudo homens. Alguns dados que a investigadora apresenta referem-se ao período anterior ao apogeu dos smartphones e dos tablets, e logo Michèle Petit alerta para um fenómeno mais complexo e não exclusivo desta suposta transição para o ecrã.

Como se motiva então para a leitura? Começando pela negativa: nunca pela apologia dogmática, moral ou utilitária. Seja na família, na escola, na biblioteca, ou num grupo de adultos amigos, o que provoca interesse e curiosidade não é o discurso mas sim a prática, o modelo. Sem livros em casa, sem um adulto de referência que se embrenhe num livro e ali fique, absorto nesse outro mundo, a criança não vai, muito provavelmente, estar tão recetiva ao livro e à leitura. Porque, como se refere no volume, ver alguém nesse estado de felicidade provoca curiosidade, espanto, inveja e até um certo sentimento de abandono que se pode recuperar imitando, reproduzindo, sobretudo acedendo.

O modelo é aquele que partilha, que se expõe, que leva o seu entusiasmo e a sua frustração para a mesa do diálogo com naturalidade e assim abre um caminho para a experimentação do outro, deseja-se que logo desde tenra idade.

“Assim, quanto à formação do gosto de ler, os estudos salientaram a importância da presença de livros em casa, em particular no quarto da criança. Todavia, esta parece ter uma influência positiva se o livro vive com a familia e é nomeadamente objeto de conversas, de intercâmbios. A capacidade para estabelecer com os livros uma relação afetiva, emotiva, e não apenas cognitiva, parece decisiva.”(p.157)

Fora do espaço íntimo da família, os mediadores intervêm chamando a si a tal exposição suficientemente discreta que não se imponha nunca ao leitor, em leituras em voz alta, em narrações orais, em ateliers de escrita, de movimento e expressão dramática ou plástica. A leitura promove-se com livro, mas pode acontecer sem ele, diretamente. Michèle Petit chama a atenção para a voz e para o corpo como dois elementos fulcrais nesse encontro com a criatividade, com o artístico, com o literário e, acima de tudo, consigo próprio, pessoa e leitor (potencial ou efetivo).

Como exemplo, relata uma experiência desenvolvida por uma professora francesa, Marielle Anselmo, com alunos adolescentes emigrantes acabados de chegar ao liceu. Através de um atelier artístico de sete meses, o grupo desconstruiu e recriou o mito de Orfeu, num projeto teatral: escrita, voz e movimento, o que permitiu não só que o grupo pudesse dar formas, narrativas, lugares simbólicos aos seus traumas como ainda lhes acrescentou um novo lugar ali, no liceu, perante os pares e a sua nova comunidade.

A pedagogia de projeto, tantas vezes discutida e muito pouco implementada é, para Petit, o caminho a seguir.

Se a escola, enquanto instituição democrática, não se desvincular do ensino formalista e utilitarista, em que conteúdos e noções teóricas se impõem e esmagam o mundo real e reconhecível pelos alunos, a curiosidade, o espanto e o acesso à arte nunca poderão medrar.

A propósito, traz outra experiência para o livro, desta feita sobre uma intervenção em jardins ou a criação a partir desses espaços. A convocação de várias disciplinas, da biologia à geometria, do desenho à escrita, das artes plásticas à geografia ou à história trouxe a resolução de problemas com que os alunos se debatiam para realizar aquilo a que se propunham e acrescentou conhecimento e novas questões. A colaboração de artistas plásticos, cientistas, músicos, jardineiros, escritores ou paisagistas ampliou ainda mais a relação com o mundo e com as possibilidades de o reconhecer e reinventar.

Todavia, a realidade em França, que facilmente percecionamos que se estende a Portugal e muito provavelmente a outros países, é a de uma escola pela e para a arte como fenómeno marginal, muito embora tenham existido intenções e até programas governamentais nessa direção.

Michèle Petit elenca as resistências múltiplas, da classe política aos professores, dos pais aos artistas, sem esquecer os próprios alunos. Preconceitos, ignorância, desmotivação, agendas próprias são algumas das razões. Nenhuma é, em primeiro lugar, financeira. Recordemos a antiga Área de Projeto, ou atualmente a carga horária destinada à interdisciplinariedade, tantas vezes gerida não para projetos de fundo com poder de escolha e decisão dos alunos mas para o instrumental das efemérides ou dos recorrentes temas genéricos de sempre.

Noutro lugar resistem as bibliotecas e Michèle Petit presta-lhes a devida vénia. A transformação que operaram no seu âmago ao se recentrarem nas pessoas e não nas coleções, a abertura do espaço ao mundo e a atenção à mediação, de todo e qualquer tipo, manteve estes lugares vivos, disponíveis para o encontro com o outro, para a procura, para a sociabilização. Mas também, defende a antropóloga e investigadora, para a proteção de que precisamos todos, seres humanos a lidar constantemente com discursos utilitaristas, semânticas de crise, formatações sociais de medo e aspirações produtivas como sinal de sucesso e reconhecimento. As bibliotecas, enquanto guardiãs dessa democracia, têm nelas a poética e a imaginação que atravessa todo o livro de Michèle Petit como a sua principal razão de ser.

Epílogo

Ao longo do livro, e apesar de os temas serem distintos, senti-me numa viagem circular e cadenciada: um elogio da leitura como revelação de si, do outro e construção de memória, história e imaginação. Diferença e repetição. Vêem-me ao pensamento associações imediatas, títulos de livros, autores que nem sei se fazem sentido neste contexto. Sobretudo memórias, memórias de uma criança que começa a apontar em diálogo com a voz da mãe, memórias de uma adolescente a ler O estrangeiro de Camus num sótão sobreaquecido, memórias de caras jovens a desenharem mapas afetivos da sua vila antes de partirem numa visita guiada por si.

Memórias de frases ouvidas e lidas a outros especialistas em leitura, memórias de bibliotecárias e bibliotecários que conhecem pelo nome as pessoas que cumprimentam e lhes guardam aquele livro que não pediram. Memórias de professoras que acreditam no trabalho de projeto. Memórias de mediadoras e mediadores. Memórias de leituras. Memórias de afetos. Memórias de memórias. Lá no fundo destas memórias, uma insondável narrativa imaginária, imagino agora.