Ir ao fundo do tempo profundo
Cruzar o tempo profundo da geologia com as múltiplas possibilidades da linguagem da banda desenhada é a proposta da exposição Deep Time, patente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), em Lisboa, até ao próximo dia 27 de Outubro.
A esperança média de vida dos seres humanos não chega aos cem anos. Na verdade, aproxima-se dos 65 em termos de média mundial, sendo que é obviamente mais alta nos países onde os cuidados de saúde e a segurança alimentar são regra, o que deixa de fora parte considerável do globo. Há quem ultrapasse a barreira do século de vida, mas são casos excepcionais. Compreender a cronologia das mudanças geológicas que o planeta que habitamos já atravessou não é tarefa fácil e é bem possível que o nosso cérebro, moldado pela experiência que temos e pelo modo como nos relacionamos com a história, com a memória e a nossa autoconsciência da morte, não consiga abarcar essa cronologia. Podemos dizer que o período Câmbrico decorreu há cerca de 500 milhões de anos (entre 500 e 570 milhões, mais precisamente), mas conseguiremos apreender plenamente o que são 500 milhões de anos?
O conceito de tempo profundo tem origem nos estudos de Geologia e corresponde àquilo a que podemos chamar tempo geológico, descrevendo com a acuidade possível os grandes eventos que foram transformando o planeta em que vivemos. Cruzar o tempo profundo da geologia com as múltiplas possibilidades da linguagem da banda desenhada é a proposta da exposição Deep Time, com curadoria de Ana Matilde Sousa e Hugo Noronha de Almeida (também eles autores de banda desenhada, assinando Hetamoé e Mao, respectivamente) e patente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), em Lisboa, até ao próximo dia 27 de Outubro.
Ana Matilde Sousa, uma das curadoras, explicou à Blimunda como ganhou forma esta exposição: «Partiu do convite a catorze artistas de Portugal e de Espanha para abordarem através da banda desenhada este conceito de deep time/tempo profundo, ou seja, o modo como a passagem do tempo fica registada nas camadas geológicas e a forma como isso ultrapassa a nossa escala. E quisemos que fosse possível pensar que implicações é que pensar o tempo profundo pode ter para a nossa idade contemporânea, para a nossa condição nesta época do Antropocénico, em que a presença dos seres humanos e as suas actividades industriais já provocou a alteração daquilo que são os sistemas terrestres, os aspectos climáticos, os eco-sistemas. Ou seja, quisemos pensar o tempo profundo não apenas como passado, mas também como presente e como algo que vai reflectir-se no futuro.»
Antropocénico é um conceito cunhado por Paul Crutzen nos anos 2000, e subscrito por vários cientistas, que refere as transformações que os sistemas planetários estão a sofrer devido à actividade humana, particularmente aquela que decorre das actividades industriais. A nota é relevante pelo que acrescenta à leitura desta exposição, e sobretudo pelas questões que permite explorar a partir desta assunção de que podemos estar a viver uma nova era geológica há já alguns séculos como consequência do nosso impacto no planeta. Apesar disso, não é preciso mergulhar em livros de ciência, nem dominar plenamente as suas mais recentes discussões, para apreciar os trabalhos expostos em Deep Time.
Nas paredes da sala do Museu Nacional de História Natural e da Ciência há apenas os catorze trabalhos em banda desenhada, cada um deles composto por 4 páginas A3. Nenhuma outra cenografia, nenhum adereço, nenhuma mensagem para lá do que cada obra comunica. Ainda assim, no percurso até à sala da exposição, vamo-nos cruzando com algumas peças da colecção do Museu, vestígios de animais que já não existem há séculos, registos múltiplos de camadas temporais, laboratórios, elementos que ajudam a contextualizar o que vamos ver nas bandas desenhadas, assim nos deixemos envolver pela identidade do lugar onde estamos. A escolha do espaço por parte dos curadores foi, aliás, prontamente aceite pelo Museu, como ficou claro nas palavras de Judite Alves, subdirectora do MUHNAC no momento da inauguração: «Esta exposição ajuda-nos a cumprir a nossa missão de aproximar os temas científicos da sociedade e a banda desenhada, acho que é um veículo excelente para isso. Muitas vezes as pessoas pensam nos museus de História Natural como museus que pouco mais mostram para além das suas colecções de animais e plantas ou fósseis, mas temos tentado encontrar diferentes maneiras de fazer chegar a divulgação científica e os temas da actualidade, como é o Antropocénico, de formas diversas e esta exposição é um bom exemplo disso.»
Esta exposição resulta da parceria entre dois grupos de investigação, o Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT) e a acção Investigation on Comics and Graphic Novels from the Iberian Cultural Area (COST iCOn-MICs). A estes grupos junta-se o Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que acolhe o resultado de um projecto que começou muito antes de se materializar nestas catorze obras em banda desenhada, como explicou Hugo Noronha de Almeida: «Já trabalhamos nisto há vários anos. Eu e a Matilde, em particular, fizemos parte da organização de um evento que foi o Anthropocene Campus Lisboa, em 2020, e nessa altura organizámos um seminário teórico-prático chamado Funny Animals que pretendia precisamente discutir como se representavam as agências não-humanas face à temática do Antropocénico. Ou seja, já há algum tempo que andamos a pensar nestes temas, até porque uma das linhas de investigação do CIUHCT, onde eu trabalho, é precisamente o Antropocénico. Do ponto de vista institucional há aqui uma confluência de interesses: o interesse do CIUHCT em promover o debate sobre o Antropocénico e o interesse do COST iCOn-MICs em promover a banda desenhada de expressão ibérica. E daí a exposição contar com artistas portugueses e espanhóis.» Quanto aos artistas, explica Hugo Noronha de Almeida, foram convidados a partir daquilo que os curadores já conheciam do seu trabalho prévio: «Queríamos ver como é que eles abordavam esta questão particular. Demos-lhes um briefing muito breve sobre o que era a temática da exposição e depois deixámo-los fazer o que quiseram. Uma das coisas que achei muito interessante foi ouvir alguns dos artistas dizerem que ficaram muito entusiasmados com o tema e que acabaram por ir pesquisar mais.»
Os catorze autores são Amanda Baeza, Ana Maçã, André Pereira, Begoña García-Alén, Bruno Borges, Cátia Serrão, Daniel Lima, Hetamoé, Irkus, Mao, Martín López Lam, Ricardo Paião Oliveira, Roberto Massó e Rudolfo da Silva. Em cada trabalho, o conceito de tempo profundo é usado livremente e entre os trabalhos expostos, todos compostos por quatro pranchas A3, reina a diversidade de traços, modos de composição, paleta cromática, figuração ou abstracção. Há referências às alterações climáticas, por exemplo no trabalho assinado por Irkus, olhares que assumem o planeta e todas as formas de vida que o habitam como um organismo complexo, feito de muitos circuitos, como nos trabalhos de Mao ou Ricardo Paião Oliveira, e alguns olhares apocalípticos, como o de Rudolfo da Silva. Há também muitos trabalhos que reflectem sobre o tempo a partir dos seus vestígios, cumprindo o desafio da exposição, como acontece nas bandas desenhadas de Amanda Baeza ou Begoña García-Alén, e outros que questionam o próprio conceito de tempo, como a narrativa assinada por Daniel Lima.
Depois da exposição, os curadores gostavam de ver estes trabalhos publicados em livro, mas ainda é cedo para saber se e como se concretizará esse gesto editorial. Até lá, Deep Time merece uma visita atenta, com tempo para ler cada narrativa atentamente e descobrir os pontos comuns, as diferentes formas de abordar essa ideia de tempo que nos é tão difícil assimilar e o modo como as dúvidas, as ansiedades e os desejos de cada autor acabam por se expressar nestes trabalhos, acabando por contaminar os visitantes nas suas possíveis deambulações mentais pela ideia de tempo. Até ao dia 27 de Outubro, Deep Time pode ser visitado em Lisboa. Havendo tempo – o dos relógios dos nossos dias apressados – valerá a pena aproveitar para revisitar pelo menos algumas das salas do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, abrindo novas leituras para o que se vê nestas catorze bandas desenhadas.