Casa da Andrea Andréa Zamorano 24 Março 2021
© Matheus Frade, unsplash

Geisa

Um sorriso rasgado e doida por samba desde os cueiros. Posso garantir. Foi Geisa quem me ensinou a sambar quando éramos meninas, coloca primeiro um pé para a frente, depois roda o calcanhar e traz o pé de novo. O seu corpo minúsculo se mexia com leveza, parecendo flutuar do alto da sua infância. Eu, pelo contrário, passei um bom pedaço me assemelhando a uma lacraia que levou um choque elétrico para depois começar a dançar apenas com um pé — típico de quem ainda não sabe sambar. A minha prima estava empenhada em me livrar daquela figura. Tem de usar os dois pés, um de cada vez, ela insistia. E tanto se requebrou ao meu lado que o meu corpo se rendeu e copiou o seu movimento. Minutos depois, recebia a minha consagração, a sua irmã mais velha passou por nós de mãos dadas com namorado e admirou-se com a minha desenvoltura. Mérito da Geisinha, verdade seja dita. 

Éramos duas pirralhas de pedra e cal no samba. Por aquela altura o ritmo se intensificava e estávamos metidas num canto da nossa varanda, as nossas casas partilhavam uma varanda comum como em tantas casas geminadas do subúrbio carioca. Geisa me incentivava a sambar mais depressa, encontrar a cadência que havia mudado. Eu ia seguindo, às vezes ainda no estilo centopeia.  

Meu tio-avô Tuninho, pai da Geisa, era um ritmista amador. Tocava pandeiro, agogô, reco-reco, surdo e o que mais houvesse no bloco carnavalesco “Amar é Viver”. Em 1978, o Amar é Viver ficou em 11º lugar no Grupo 3 do desfile da cidade do Rio de Janeiro. Não era uma agremiação ambiciosa e pouco importava. A quadra de ensaios era ali ao lado, a duas esquinas de distância, e de vez em quando nos levavam. Porém estávamos numa daquelas noites em que tudo só poderia dar certo e deu: os músicos foram para a nossa varanda. As minhas sandálias já deslizavam no chão de cerâmica enquanto eu sambava com a minha prima aperfeiçoando a minha técnica, impregnando os seus passos em mim.

Hoje acordei e descobri que nunca mais isso se repetirá, não por termos crescido ou morarmos em diferentes partes do mundo ou ainda porque aprendi a sambar (e bem, modéstia às favas), mas porque a Geisa não resistiu. Desaparecendo das nossas vidas físicas prematuramente. 

Foi vítima duas vezes, do vírus do Covid19 propriamente dito e da incompetência de um Estado facínora. Sucumbiu no mesmo dia em que o chefe da nação cruelmente celebrava o seu aniversário com quinhentas pessoas, bolo e parabéns. Desprezando os que morrem e morreram nesta pandemia ao lavar as suas mãos num espelho dá’gua em frente ao Palácio da Alvorada. Espelho em que ele não se vê refletido, alvorada que ele impede de nascer. A compaixão deveria ser a virtude essencial para o desempenho das funções de presidente.

Mas será outro o dia dessa luta. Por agora, tenho um buraco no lugar onde costumava estar o meu coração que quero preencher imaginando a nossa Geisa chegando nos jardins do Paraíso e sendo recebida por uma batucada. Envergando um manto colorido. O samba comendo solto e ela, sempre generosa, se alinhando lado a lado com anjos e dizendo assim: coloca primeiro um pé para a frente, depois roda o calcanhar e traz o pé de novo.