12 Março 2025

Fugir para recomeçar: três mulheres refugiadas têm a palavra
Por motivos diferentes, Margarita Sharapova, Lorena Beatriz Pecci e Vdovenko Kristina abandonaram os seus países de origem e procuraram refúgio em Portugal. Um livro reúne as suas histórias, dando a conhecer uma realidade que raramente vemos quando nos cruzamos, diariamente, com pessoas imigrantes ou refugiadas.
Em 2024, o número de pessoas deslocadas à força atingiu níveis históricos, ultrapassando os 120 milhões. Os números são da ACNUR, a agência da Organização das Nações Unidas para as pessoas refugiadas, e é a mesma organização que estima que, já este ano, esse número deverá crescer para os 140 milhões. O termo “deslocadas à força” é claro quanto à imposição desta condição sobre tantas pessoas, algumas delas detendo o estatuto de refugiadas, outras requerentes de asilo em diferentes países, algumas consideradas apátridas e muitas deslocadas internamente, sem necessariamente abandonarem o seu país de origem. Os motivos que levam a essa deslocação variam, mas estão quase sempre relacionados com conflitos armados, perseguições políticas e violações dos direitos humanos. A estas causas junta-se, cada vez com mais expressão, a crise climática, que está a provocar crises humanitárias em diversos territórios do globo.
Um livro publicado em português no final do ano passado ilustra alguns dos motivos que levam a estas deslocações e, tantas vezes, ao estatuto de refugiado. É um livro que dá voz a três mulheres que foram obrigadas a sair dos países onde viviam, e onde tinham nascido, vindo para Portugal à procura de refúgio. As mulheres são Margarita Sharapova, Lorena Beatriz Pecci e Vdovenko Kristina e o livro é De Lá Para Cá – Três histórias de mulheres refugiadas, com chancela das Edições Insurgentes, projecto editorial umbilicalmente ligado à Livraria das Insurgentes, em Lisboa. Um detalhe importante, pelas fronteiras que ajuda a quebrar, é o de este ser um livro em português, russo, ucraniano e espanhol.

Quando o Estado é o criminoso
Margarita Sharapova nasceu na Rússia, então União Soviética. Escritora, foi a primeira pessoa a publicar textos e livros que abordavam temáticas LGBTQ+ no seu país e foi um desses livros que, já no século XXI, se tornou um bestseller, tornando-se igualmente alvo de ódio. Moscovo. Estação Lesbos foi publicado em 2004 e algum tempo depois Sharapova começou a receber ameaças que rapidamente passaram a assédio e a actos de violência. O texto que aqui publica, «A fuga russa» conta tudo isso, mostrando não apenas as atitudes homofóbicas individuais e de grupos organizados, mas também a complacência do Estado, sobretudo através da instituição policial. E, mais do que complacência, a cumplicidade activa: «O outro polícia, sentado numa secretária ao lado, levantou-se, aproximou-se, pegando no Código Penal em cima da mesa e bateu com ele na minha cabeça. Dei um grito de dor e levantei-me. O polícia aproximou-se a pôs-me as mãos atrás das costas. O inspector chamou o polícia de serviço e, logo que ele entrou, ordenou que me fechassem na “casa dos macacos”, uma cela para delinquentes detidos.» (pg.40/41)
Depois de um período em que os ataques se tornaram mais frequentes, a sua companheira acabou por morrer, depois de ser espancada por agentes da polícia. Tornou-se claro que as forças de segurança não só nunca protegeriam a vítima como, tendo oportunidade, teriam todo o gosto em participar elas própria no ataque e Margarita Sharapova percebeu que teria de fugir. «Eu pensava que, pelo final dos anos 90 e início dos anos 2000, a liberdade de expressão tinha chegado à Rússia irrevogavelmente. Com a democracia, pensava que o regresso da homofobia medonha do passado, que reinou por muitas décadas na URSS, já não seria possível, estava enganada e regredimos muito mais cedo do que eu esperava, com o pior dos pesadelos.» (pg.26) Pouco depois destes episódios, uma lei “contra a propaganda gay” foi aprovada no parlamento russo e tudo aquilo que as forças de segurança faziam impunemente, mas ainda assim sem cumprir a lei, passou a ser legal. Ficar deixara de ser uma opção e a autora acabou por fugir para Portugal, mesmo sem conhecer o país.

A guerra à porta de casa
A viver em Portugal desde 2013, depois de receber asilo político, Margarita Sharapova continua a escrever. O seu relato, o primeiro deste livro, é uma denúncia explícita da homofobia e das muitas violências que se lhe associam, mas é também o registo de uma história de esperança, ainda que atravessada pela tristeza de ter de deixar tudo para trás e fugir. Essa tristeza estende-se, aliás, aos outros dois relatos e, no segundo testemunho, a geografia desloca-se apenas um pouco para o lado. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, iniciando uma guerra que se prolonga até hoje e cujos contornos há muito ameaçam sair do território ucraniano, Kristina Vdovenko foi uma das muitas pessoas que conseguiram fugir. Poucos dias depois de começarem os bombardeamentos, Kristina e a namorada deixaram família e amigos para trás e saíram da Ucrânia numa carrinha, integrando um grupo de outras pessoas que também fugiam: «Levámos cinco dias a chegar ao sol de Portugal, cinco dias numa carrinha e uma noite passada em França. Agora soa a pesadelo, mas na altura havia um objectivo, nada mais.» (pg.100)
O seu relato é muito breve, mas é de uma tremenda clareza quanto ao facto de ninguém nunca estar preparado para ter uma guerra dentro de casa. A fuga de Kristina Vdovenko foi bem sucedida e o texto que escreve não se detém em pormenores sobre esse percurso de cinco dias. Detém-se, isso sim, na sobrevivência, na capacidade de adaptação que acabamos sempre por encontrar e, sobretudo, detém-se numa questão pertinente, talvez a única que nos serve para pensarmos o mundo fora das lógicas belicistas, de ocupação, de domínio: «Como é que todos nós conseguimos entrar, no século XXI, para uma época tão sombria? Onde o ódio é manufacturado, embalado, vendido e enfiado pela boca abaixo sem qualquer tipo de esforço ou pressão.» (pg.102-103)

Ameaças e enganos
A história de Lorena Beatriz Pecci não passa pela guerra tal como a conhecemos, com exércitos, ocupações e bombardeamentos, mas de algum modo foi uma espécie de guerra que a pôs a caminho de Portugal. Na sua Argentina natal, Lorena era professora e assistia, nos últimos anos, ao crescimento do consumo de drogas dentro da escola onde leccionava. Quando tentou, em conjunto com outros professores e funcionários, implementar acções de sensibilização sobre estupefacientes e sobre modos de evitar os traficantes, começou a receber ameaças, que rapidamente subiram de tom.
A saída da Argentina foi a solução encontrada pela professora para não ter de viver com medo e o destino acabou por ser Portugal. O relato de Lorena Beatriz Pecci é longo, cheio de detalhes, revelando não apenas a situação ameaçadora que enfrentou na sua terra de origem, mas também algumas situações desagradáveis pelas quais passou já em Portugal. Nesse aspecto, este relato é também sobre o modo como se acolhem imigrantes e sobre as redes de diferentes negócios ilícitos que tiram partido da vulnerabilidade de quem chega: «Este senhor comprometeu-se a tratar da minha documentação em Portugal em troca de um pagamento. Só depois percebi que esses documentos eram emitidos gratuitamente. Muitas pessoas aproveitam-se desta situação, especialmente porque muitos de nós, imigrantes, não conhecemos os procedimentos.» (pg.126)
Cada uma destas três histórias representa-se a si própria, dando voz às suas protagonistas, mas conhecer estas e outras histórias é uma forma de quebrar vários silêncios: os que rodeiam os contextos opressivos e violentos que fazem com que as pessoas procurem refúgio noutros lugares e os que envolvem, demasiadas vezes, toda uma “indústria” ilegal que tira partido da fragilidade de quem sai do seu país com pouco ou nada na mochila e se vê, de repente, num lugar estranho. Por outro lado, escutar o que nos dizem as pessoas que procuram refúgio aqui, onde vivemos, seria um bom ponto de partida para discutirmos políticas de acolhimento, liberdade de movimento e responsabilidades comuns no desencadear de situações que levam a que tanta gente abandone a sua casa. É, pelo menos, um modo de nos aproximarmos das muitas pessoas que nos rodeiam e cujas histórias raramente conhecemos.