
Fracassar é preciso
Fracassei ontem. E não foi a primeira vez.
Gostaria de ter despertado como em quase todas as manhãs, me esquecendo de algo importante, para variar. Trazia um buraco no meio do peito que queria esconder, mas ele estava escancarado. Uma boca banguela enorme, bem no meio do meu tórax, gritando que eu não era capaz.
Vesti a roupa do dia anterior. Tanto fazia. Não iria trabalhar. Também não abriria mais a porta do apartamento, nem atravessaria a rua na direção da mercearia da Dona Conceição. Não naqueles dias em que o espelho do banheiro me devolvia um rosto que parecia o meu, porém menor.
Todo esse desejo de sucumbir durou o tempo de receber uma mensagem com aviso de corte da companhia telefônica. A vida não tem nada de poético, de sarcasmo bastante, resmunguei. Foi assim que me vi obrigada a reconsiderar as minhas sorumbáticas opções e juntar-me aos restantes alinhados na fila à espera do 423, com destino ao Centro, passando pela cidade universitária. Uma excursão! Seria possível que, mesmo diante de um sentimento denso (e justificado), pudesse sentir sem ser frustrada outra vez?
No trabalho, sentei-me e sorri para a minha colega. Se não o fizesse, ela me perguntaria por que estava tão vexada? Teria de inventar uma desculpa. Ela faria mais perguntas. Era melhor sorrir. Um sorriso amarelo sem vontade nenhuma de mostrar os dentes (quantas vezes repito essa frase…). Sei lá. Ela acabou não me perguntando nada. Pelos vistos, sorri o suficiente.
O dia transcorria sem maiores sobressaltos até ao meio da tarde, quando fui buscar um café. Evitei o horário de pico para não encontrar nenhum colega, contudo lá estava ela, sem vergonhas e nem filtros, me esperando paciente: a minha culpa espraiava-se no parapeito da janela. Olhava-me direto nos olhos, proferindo a sentença para o veredicto que já conhecíamos: culpada por ter se achado e por não ser o bastante. Carregaria uma vergonha encovada no peito durante várias semanas. Nunca mais falaria no assunto, na oportunidade desperdiçada e, sobretudo, maculada pela minha falta de noção. Quando caminhasse na rua, não veria as cabeças virando na minha direção, mas sentiria os risinhos falsamente contidos, cheios de desprezo. Fujo da copa e, como Golgona, tenho medo que a verdade me possa desfigurar o rosto.
A noitinha, em casa, tirei os sapatos no escuro, deixei a bolsa no chão. Fui até a cozinha, abri a porta da geladeira. Um frasco de cogumelos a meio, dois pacotes de ketchup na porta, um pote com comida velha e água. Nada muito diferente de mim. Agarrei na garrafa, tomei um grande gole dessa água fria pelo gargalo. Merda! Doeu o meu dente de trás. Necessito ir urgente ao dentista, pensei na canção por dois segundos. Nem tinha alma de artista, quem sabe a conta bancária de um mambembe.
Fui-me deitar para evitar piorar o meu estado. Estava sem sono, mas não correria mais riscos. Na cama conseguiria não remoer tanto, julguei. Coloquei os fones, uma música binaural numa frequência com sons das florestas. Demorei bastante a adormecer.
Talvez amanhã eu fracasse de novo, talvez.