Saramaguiana
por Leonor Xavier 5 Março 2024
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Entrevista de Leonor Xavier a José Saramago

Em 1990, José Saramago recebeu em sua casa, na Estrela, a jornalista e escritora Leonor Xavier para uma entrevista. A conversa, publicada na revista Máxima, girou em torno das personagens femininas do autor de Todos os Nomes. Para assinalar o Mês da Mulher, a Blimunda recupera essa entrevista feita há mais de quatro décadas.
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«Essa coisa misteriosa que é sempre a mulher»

Por Leonor Xavier

«(…) depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou que nome é o seu, e o homem disse, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis». Assim se falam pela primeira vez Blimunda e Baltasar, naquela Lisboa do séc. XVIII em que a grande História se cruza com as histórias da gente sem nome a quem José Saramago deu vida no Memorial do Convento. Blimunda pode olhar por dentro das pessoas. Baltasar, sem o saber ainda, mas já sabendo, lho diz: «Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei. Olhaste-me por dentro».

Impossível deixar de evocar a dimensão mágica da escrita de Saramago, quando, poucos dias depois de assistir à ópera Blimunda no Teatro Scala de Milão, ele diz como se emocionou por ouvir dizer e dramatizar Portugal na harmonia compósita que entrelaçava canto lírico e gregoriano, múltiplas vozes em coro ou recitativo. E conta como um dia recebeu uma carta de Itália, há uns quatro anos, do compositor Azio Corghi, com a ideia e a proposta de criar a ópera. E fala do encenador Jerôme Savary, e mostra o libreto onde decorrem hinos de louvor e glória a Deus, com o canto de lamentação dos homens que construíram o Convento de Mafra por ordem do rei D. João V. A utopia e a paixão e o sonho, um certo tom herético do romance, o deslumbramento do escritor a exprimir-se agora mais num tom de voz emocionado do que por palavras de vanglória. Que me faz lembrar outra vez em que me disse. «A obra feita é sempre maior do que quem a fez. De facto, eu acho que somos menos do que aquilo que fazemos, e isso é outra forma de grandeza, ser capaz de ser menos do que aquilo que se faz».

Depois de Milão, a ópera inspirada no Memorial do Convento estará em Lisboa no Teatro de S. Carlos. Os pés dos peregrinos de Mafra serão enormes e o esforço dos homens a carregar a pedra do Convento terá atravessado um bom bocado do tempo até chegar a nós, no tempo presente. Entre viagens e entrevistas, colóquios e debates universitários, acertos de traduções e falas com editores, decorrem os dias e os meses de José Saramago. Foi num entre ir e voltar a conversa marcada sobre sentimos e emoções, homens e mulheres, e o universo feminino que ele tão bem entende e que, como escritor, tem passado às pessoas.

UMA PRÁTICA DE RECATO

A rua chama-se dos Ferreiros, junto à Basílica da Estrela, a lembrar que os artesãos marcam até hoje os caminhos de Lisboa, e que as igrejas permanecem em badaladas de louvor a Deus. Final de tarde de Sábado, quando se ouvem barulhos nas cozinhas a preparar a noite, vozes de gente e risos de crianças, esta geografia da cidade mantém-se intacta nos rituais.

Fecham-se as portas na casa, e inventa-se todo o silêncio em redor. Estamos envolvidos em harmonia de pinturas, na parede, e de livros, muitos, autores contemporâneos e universais.

Objectos e fotografias, cada coisa tem o seu lugar e a sua identidade de significado. Nada de mais, nem de menos. Há luz filtrada pelos desenhos de renda a cobrir os quadrados das janelas. Rosas num solitário sobre a mesa de trabalho, o escritor tem o seu assento num canto certo. Ele resguarda-se em doce ambiente, tempero para a rigorosa disciplina da criação e para a outra, igualmente firme, de dizer de nós a outros mundos de expressão, justificado pelo escritor:

— Não acho que a biografia duma pessoa seja interessante. O que é me interesse eu ter-me casado uma vez e ter-me divorciado? Quando falamos da nossa vida pessoal, inevitavelmente estamos a falar da vida de outras pessoas. Acho que tem de haver um recato. Se eu disser que fui casado e me divorciei, não fala só de mim, falo de alguém que não tem o direito de ser chamado a essas questões.

Faça-se uma viagem pelos romances de José Saramago com o alento de uma respiração funda. A ler o que é dito sobre o grande mistério da mulher, fermento de todas as coisas. Haverá a fala de Blimunda no Memorial do Convento. «Afinal que faltas são essas nossas, as tuas, as minhas, se não somos, mulheres, verdadeiramente, o cordeiro que tirará o pecado do mundo, no dia em que Isso for compreendido vai ser preciso começar outra vez tudo.» E haverá a emoção de Joaquim Sassa na Jangada de Pedra: «Rolou na cama, fechou os olhos, vai adormecer. Está uma lágrima numa das suas faces, tanto pode ser de Maria Guavaira como sua, os homens também choram, não é vergonha nenhuma e só lhes faz bem.» E haverá Ricardo Reis a dizer a Fernando Pessoa, em O Ano da Morte de Ricardo Reis: «Diz-me a minha fraca experiência que despeito é o sentimento geral dos homens para com as mulheres.»

E aparece, sempre, o escritor José Saramago seduzido pelos gestos das mulheres, idênticos ao longo dos séculos. Como, ainda, na Jangada de Pedra: «Toda a gente sabe que dois vestidos de mulher fazem uma festa e com duas saias e duas blusas se arma um arco-íris», e mais adiante: «Riem as duas no estendal, o vento dá-lhes nos cabelos, as roupas estalam e drapejam como bandeiras, apetece gritar viva a liberdade.» É por isso que falar da Mulher se propunha como assunto primeiro da conversa que viesse a acontecer. Reconhecendo que Blimunda é o «motor da história» do Memorial do Convento, Saramago começa por dizer:

— Eu não sou um escritor de mulheres, no sentido de escrever para elas, como acontece, por exemplo, com alguns autores franceses contemporâneos. À primeira vista, isso pode pensar-se, uma vez que as personagens fortes dos meus livros são as personagens femininas. Isto é um facto que talvez resulte de que, conhecendo eu melhor os homens do que as mulheres, as debilidades e as fraquezas dos homens, sou levado a reduzir a importância deles como figura das minhas ficções, e por isso sobe a importância das personagens femininas. Eu não posso dizer que conheço as mulheres, mas tenho a consciência das incoerências dos homens, não os vejo como heróis, mas como seres inseguros na sua relação com a mulher. Por isso sobe a importância das mulheres.

O MISTÉRIO DAS MULHERES

Escritor que regista atentamente os pedaços de vida à sua volta, José Saramago compôs páginas da História do Cerco de Lisboa sobre o ‹olhar, ver e reparar» que, para além da ficção, estão de facto incorporados na sua maneira de ser. Por isso fala agora:

— Essa coisa misteriosa que é sempre a mulher! A mulher é uma espécie de surpresa constante. O hábito de um relacionamento pode levar muitas vezes a não ver as coisas, ou ao não reconhecimento de certos valores da mulher na vida quotidiana, certos valores de honestidade, por exemplo, ou um certo modo sério de ser. Eu tento sempre ver as situações, e as pessoas e as coisas como se fosse a primeira vez.

E, por ver a firmeza das mulheres, José Saramago pensa melhor em fragilidade:

— Se calhar, essa importância das mulheres nos meus livros vem de uma espécie de compaixão que eu sinto, não no sentido de piedade ou de pena, mas no sentido de compaixão. Todos nós somos uns «pobres-diabos», somos seres débeis e contraditórios, e nem os nossos orgulhos ou presunções ou vaidades conseguem disfarçar essa evidência, que pela vida vai triunfar, enquanto tentamos chegar à felicidade. Esta compaixão que sinto não é a de alguém que julga, nem de alguém que, achando-se superior, possa perceber isso. Todos nós somos uns pequenos homens que vamos tentando fazer grandes coisas, isso realmente está presente nos meus livros.

Para José Saramago há muitos ingredientes de distinção, além destes, a separar o mundo masculino e feminino:

— Nós falamos do lado feminino das coisas, porque existem, na verdade, dois universos distintos, por muitas pontes que se estabeleçam entre um e outro, pela amizade ou pelo amor. Não podemos cair nos lugares-comuns e dizer, por exemplo, que o homem é corajoso e a mulher é tímida, porque isso não é verdade. Não há características concretas de diferença, a não ser as biológicas e, em parte, temos que lembrar que ao longo dos tempos, a relação entre homem e mulher na sociedade foi de poder, foi de dominador/dominado, e que isso criou certos hábitos de comportamento entre uns e outros.

— Eu não encontro qualidades morais masculinas ou femininas, penso que as diferenças se encontram mais no plano da sensibilidade. Ao homem falta em geral algo a que chamamos «sensibilidade», eu não falo da emoção ou da lágrima fácil, mas desse modo sensível de entender o mundo que é o da mulher, como a vejo e ponho nos meus livros. A realidade chega à mulher por outras vias que não a da razão. Como a do sentido da maternidade, ela dá-lhe outra dimensão, que o homem não pode ter.

— Nós usamos as palavras, mas não sabemos a que correspondem. Eu falo de maternidade, mas o que é que um homem sabe da maternidade? Essa palavra só pode ser entendida quando dita por uma muIher-mãe, se eu a disser, não é a mesma coisa.

ENCONTROS, DESENCONTROS, AMORES

Os romances de José Saramago passam pelas histórias dos encontros e das expressões do amor. Neles se sabe de Mogueime e Oroana no séc. XII, de Blimunda e Baltasar no séc. XVIII, de Ricardo Reis e Lidia e Marcenda em presença de Fernando Pessoa e Ofélia. E neles evoluem, no tempo presente, os enredos de Maria Sara e Raimundo, Maria Guavaira e Joaquim Sassa, Joana

Carda e José Anaiço. Recordo outra vez em que o escritor me tinha dito: «Penso que as histórias de amor estão nos romances, porque o amor está na vida, e se tudo cabe dentro de um romance, o amor não só está, como pode explicar que se escreva esse mesmo romance».

E pergunto-lhe, agora, sobre o amor:

— Penso saber que o amor não tem nada que ver com a idade, como acontece com qualquer outro sentimento. Quando se fala de uma época a que se chamaria de descoberta do amor, eu penso que essa é uma maneira redutora de ver as relações entre as pessoas vivas. O que acontece é que há toda uma história nem sempre feliz do amor, que faz que seja entendido que o amor numa certa idade seja natural, e que noutra idade extrema poderia ser ridículo. Isso é uma ideia que ofende a disponibilidade de entrega de uma pessoa a outra, que é em que consiste o amor.

— Eu não digo isto por ter a minha idade e a relação de amor que vivo. Aprendi que o sentimento do amor não é mais nem menos forte conforme as idades, o amor é uma possibilidade de uma vida inteira, e se acontece há que recebê-lo. Normalmente, quem tem ideias que não vão neste sentido e que tendem a menosprezar o amor como factor de realização total e pessoal, são aqueles que não tiveram o privilégio de vivê-lo, aqueles a quem não aconteceu esse mistério.

Reconhecendo-se escritor fascinado pelas mulheres, José Saramago diz:

— É verdade que o homem está sempre em contemplação da mulher e dos seus gestos. Eu vivi, mesmo em garoto, mais com mulheres do que com homens, mesmo na minha família, e até porque as mulheres é que cuidavam dos garotos. Em famílias rurais como a minha, isso acontecia. O pai era o chefe, a voz da autoridade, o que castigava. A avó, a mãe, as tias, eram um universo mais suave, havia uma grande cumplicidade entre as crianças e as mulheres de uma casa. Hoje, as coisas mudaram, muitas vezes as crianças vêem as mães a abrir latas e caixas de produtos congelados, depois do trabalho, os gestos vão sendo diferentes.

Talvez tudo isto explique que José Saramago seja um bom interlocutor de mulheres:

— É verdade, eu entendo-me sempre melhor com uma mulher do que com um homem, a conversa é sempre mais solta, mais descontraída. Eu acho que a relação com as mulheres é mais directa.

UMA AVÓ QUE LHE QUER BEM

E são múltiplas, também, as falas das mulheres ao escritor. Que nem de propósito seria mais a propósito destes temas a carta recém-chegada do Brasil para José Saramago, evocando uma crónica que uma vez publicou em A Capital e agora se compilou em livro. A crónica era dedicada à sua avó, e por ela lhe escreve assim uma senhora de 78 anos, de uma cidade brasileira do interior: «José Saramago: tomei para mim as palavras que disseste à tua avó pela afinidade, carinho e doçura que senti. Pois como ias saber que no Brasil há uma avó que te quer bem? Como a tua avó, digo: a vida é tão bela e tenho tanta pena de morrer! Beijo essa fronte de tão lindos pensamentos e as mãos que os escreveram…».

Arruma, de novo, a carta no envelope amarelo e verde original, quer responder-lhe com cuidado, confessa a grande emoção que lhe vem, às vezes, de surpresa:

«Uma carta assim dá a explicação de tudo, sobre esta história de escrever deste mundo e o outro. Quem escreve, o que pode desejar de melhor do que fazer soar estas vozes, estes testemunhos, estas emoções?».

Ainda retomando a fala escrita de Saramago, como remate destes tecidos fragmentos, respire-se uma vez mais, para pensar no recado que fica na História do Cerco de Lisboa, para mulheres e homens dispostos a meditar nestes temas: «O mal está em vocês, homens todos, a macheza, quando não é a profissão é a idade quando não é a idade é a classe social, quando não é a classe social é o dinheiro. alguma vez vocês se decidirão a ser naturais na vida, (…) Parece que estamos em guerra, Claro que estamos em guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos, o amor será não haver mais barreiras, o amor é o fim do cerco.»