Crítica Sara Figueiredo Costa 25 Julho 2025

Duas histórias de resistência

Companheiras
Antonella Gilardi
Boca

Uma das mais recentes edições da Boca, editora especializada em audiolivros, é um hino ao prazer de ouvir contar histórias e de as ler. A edição, desenhada por Pedro Serpa, é cuidada, como sempre acontece com os livros da Boca, e materializa-se num pequeno livro de capa em cartão castanho, quase papelão, impressa a preto, branco e vermelho. Aí se acomodam 32 páginas que reúnem dois contos da autora italiana Antonella Gilardi inspirados em histórias da resistência anti-fascista em Itália, durante e depois da II Guerra Mundial.

Antes dos contos, uma introdução contextualiza a resistência anti-fascista italiana, destacando o papel das mulheres, essencial para as tantas operações que foram desenvolvidas – da troca de mensagens à sabotagem de carros e outros materiais utilizados pelos fascistas, passando pelo transporte de alimentos ou pela vigilância –, e o modo como se constituíram os Gruppi di Difesa delle Donne (GDD), que mais tarde seriam uma das sementes dos movimentos feminista e sindical que floresceram depois da II Guerra e da derrota de Mussolini: «Das 70 mil mulheres que faziam parte dos GDD, 35 mil combateram nas fileiras dos partigiani. Destas, 4653 foram presas e torturadas, mais de 2750 foram deportadas para a Alemanha, 2812 fuziladas ou enforcadas e 1070 morreram em combate. Depois da guerra, 19 foram condecoradas com a medalha de valor militar.» A pouca relevância que as narrativas oficiais futuras deram ao papel destas mulheres é contrariada com dedicação pelos dois contos que se seguem à introdução.

“A triunfal fuga fascista” é o primeiro conto e tem como personagens Natalina Vacchi e Dante Di Nanni, duas figuras reais da resistência, num enredo inspirado em vários episódios historicamente documentados. Dante Di Nanni começou o seu percurso militante no Grupo de Acção Patriótica de Turim e juntou-se à Resistência em 1943. Participou em várias acções directas, entre elas a sabotagem de uma rádio que interferia com as emissões da Rádio Londres, única emissora livre a que era possível aceder. Foi morto pelas milícias fascistas, depois de ter sido cercado e de ter resistido durante duas horas, o que muito contribuiu para a sua imagem heróica entre a Resistência. Por seu lado, Natalina Vacchi juntou-se ao Partido Comunista na clandestinidade em 1942, tendo contribuído para inúmeras acções de protesto contra a guerra e contra Mussolini. Foi presa pelos fascistas juntamente com outros onze membros da Resistência, numa acção de retaliação pelo assassinato de um oficial das Brigadas Negras, tendo sido enforcada, sem julgamento, na Ponte degli Allocchi, em Ravenna. O seu corpo ficou pendurado durante vários dias, como aviso à população local.

O conto criado por Gilardi inspira-se nestas duas vidas, colocando-as em cena numa narrativa que começa, precisamente, com um corpo enforcado (não o de Natalina) e que prossegue, explorando as estratégias de comunicação e acção dos partigiani, nas quais Lina aprenderá a participar ao lado de Dante, e que levará por diante depois da morte deste. O resultado é uma história que equilibra a vertente trágica da repressão com algum humor, expresso no modo como resistentes de vários pontos de Itália, coordenados pelas informações que Lina põe em marcha, mantém um grupo de fascistas às voltas no território como baratas tontas, gozados pela população, que alterava sinais de trânsito e dava indicações erradas à comitiva:

«Cada vez que os fascistas passavam por uma aldeia, cruzavam-se com grupos de pessoas que olhavam para eles, depois apontavam e riam à socapa. Mas não havia tempo para parar e, quando passavam pelas aldeias, os motoristas carregavam a fundo no acelerador, de maneira que, na tarde do segundo dia, havia grupos de pessoas à beira das estradas a gritar e a torcer pelos carros que passavam – Força! Não desistam! Continuem assim, que vão chegar primeiro! –, como se fosse “il giro d’Itália”.»

O segundo conto, “O fato chantilly”, passa-se pouco depois da guerra, juntando os ecos dos partigianni ao florescimento do movimento feminista e sindical. Inspirado no cancioneiro italiano de luta, como explica a autora na introdução, este conto é um elogio à auto-organização das mulheres, sobretudo nas fábricas, mas também à afirmação das suas liberdades e desejos pessoais.

O casamento de uma trabalhadora da fábrica de tecelagem, gatilho da narrativa, transforma-se num momento que junta alegria e luta, na sequência de uma greve para assegurar que o patrão da fábrica assumirá as suas obrigações relativamente às medidas de segurança no trabalho. A ternura com que se regista a futura união de duas pessoas não rouba espaço à determinação com que estas mulheres lutam pelos seus direitos, acabando por se misturar a boda com a greve e com a carga policial que esta originou. E também aqui o humor ocupa o seu espaço:

«Contaram-me que, no mesmo dia, as mulheres encontraram outra maneira muito criativa de conquistar os seus direitos: parece que, no auge da cerimónia do copo de água, depois de emborrachar bem o engenheiro Bertone, conseguiram que ele assinasse o contrato de responsabilidade sobre as medidas de segurança no trabalho. Contaram-me que ele só se deu conta alguns meses depois…»

A acompanhar os contos, duas ilustrações de Manuela Romeiro materializam os rostos de Natalina Vacchi e Dante Di Nanni, enquadrados por alguns momentos das suas vidas na Resistência, bem como uma das cenas do segundo conto, e isto em linhas que por um lado se aproximam do realismo, sobretudo nas fisionomias, e por outro criam um estilo que parece ter raízes nessa amálgama visual que os registos fotográficos antigos tendem a assumir quando os revisitamos.

Sem pirotecnia sonora, a vertente áudio deste Companheiras é acessível através de um QRCode, a partir do qual podemos escutar a própria autora contando as histórias que lemos no livro. E é um privilégio ouvir contar uma história, duas, na verdade, de modo tão entusiasmante, com uma noção de ritmo e suspense na progressão narrativa que se aproxima muito – tanto quanto é possível quando o som sai de um computador ou um telemóvel – das rodas de conversa em que alguém conta uma história.

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