Marcos Ana, pseudónimo de Fernando Macarro Castillo (1920 – 2016), foi um poeta e ativista espanhol. Encarcerado em 1939, passou 23 anos na prisão, convertendo-se no preso político que mais tempo esteve na cadeia durante a ditadura franquista. Durante a detenção criou gosto pela literatura e começou a escrever versos.
Em 2009 o seu livro Decidme qué es un árbol foi publicado em Portugal. Editado pela Guerra e Paz, Digam-me como é uma árvore ganhou um prólogo de José Saramago, texto que a Blimunda recupera para esta edição.
Digam-me como é uma árvore, José Saramago
“Digam-me como é uma árvore, digam-me como é a justiça, não me digam como é a dignidade”. Digam-lhes como é uma árvore porque o cárcere, como um insaciável vampiro, vai sugando a pouco e pouco as recordações do mundo exterior, digam-lhes como é a justiça porque ali onde se encontram, entre quatro paredes imundas ou perante o pelotão de fuzilamento, ela é uma caricatura ignóbil, um arremedo grotesco, a própria máscara do opróbrio. Mas não lhes digam o que é a dignidade porque a conheceram intimamente, com ela se deitaram e com ela se levantaram, comeram à mesa com ela ou lhe ofereceram a sua fome, e entre umas horas e as outras, enfrentando carcereiros e verdugos, cerrando os lábios e os dentes sob os extremos da tortura, esses homens reinventaram a dignidade humana nos lugares onde, segundo a cartilha dos criminosos, deveriam ir perdê-la. Este livro de Marcos Ana conta-nos como foi. Apresentando-se como memórias de uma vida, é muito mais do que isso, não só porque o seu autor rejeita toda e qualquer tentação de olhar-se, complacente, ao espelho, como o despedaça para que, nos seus múltiplos fragmentos, venha reflectir-se a face dos seus companheiros de infortúnio. O eu, aqui, é sempre um nós.
Este livro é uma lição de humanidade, não porque o seu projecto e o seu propósito tenham sido os de leccionar os leitores para o caminho recto, como se destas páginas tivessem de deduzir-se um código ético ou um manual de regras de moralidade pública e privada, mas porque, de um modo que é ao mesmo tempo descarnado e poético, Marcos Ana examina e descreve, com subtil bisturi e um estilo seguro dos seus recursos, a vida carcerária, os seus heroísmos e os seus desfalecimentos, a solidariedade feita instinto, a coragem como um hábito, sem a qual não seria possível sobreviver ao inferno dos dias e das noites, ao medo das madrugadas que traziam a morte, a longa espera de uma liberdade que para muitos não chegou nunca. Diz-nos como é uma árvore para que não duvidemos de que algo no mundo, fora destes muros, continua a lutar contra a infâmia, contra a mentira, contra a crueldade demencial dos inimigos da vida, diz-nos como é e onde está a justiça para que lhe arranquemos a venda dos olhos e ela ver, enfim, a quem, em realidade, tem estado a servir, mas não nos digam como é a dignidade porque o sabemos já, porque, mesmo quando ela parecia não ser mais que uma palavra, compreendemos que era a própria essência da liberdade em seu sentido mais profundo sentido, esse que nos permitia dizer, contra a própria evidência dos factos, que estávamos presos, mas éramos livres. Este livro o demonstra, como um sopro de ar fresco que vem derrotar o cinismo, a indiferença, a cobardia. Também demonstra que há uma possibilidade real de acedermos à esfera do verdadeiramente humano. Marcos Ana esteve lá. Esteve e estará enquanto viva. Agradeçamos-lhe a simplicidade, a naturalidade com que é um homem. Inteiro, autêntico, completo.
José Saramago