Crítica Sara Figueiredo Costa 21 Março 2023

Debaixo do negrume, a ternura

Companheiros da Penumbra
Nunsky
Chili Com Carne

Nunsky não é um autor prolífico no panorama da banda desenhada portuguesa. Publica pouco, com intervalos temporais longos, e não é pródigo em aparições públicas, o que talvez contribua para afastar do seu trabalho os holofotes tantas vezes necessários a um reconhecimento mais generalizado. Ainda assim, o seu nome foi-se mantendo como referência depois das participações no fanzine Mesinha de Cabeceira, editado pela Chili Com Carne, e quanto, 14 anos depois da última dessas participações, lançou uma história longa, o regresso confirmou que valia a pena a espera. Aconteceu com Erzsébet, publicado em 2014, a que se seguiram mais histórias breves em novas edições do Mesinha de Cabeceira, antes de mais uma desaparição. Agora, Companheiros da Penunbra vem confirmar que a espera pelos regressos de Nunsky é sempre recompensada.

Ao longo de mais de 300 páginas de um preto e branco vigoroso, Companheiros da Penumbra chama à cena a cidade do Porto, os anos 90 do século passado e os bares mais escuros e nada conhecidos dos roteiros turísticos (que, nessa altura, ainda eram coisa por imaginar). É nesse cenário em constante movimento que um grupo de amigos se vai formando, com a música designada por gótica a assumir os alicerces. Entre reflexões existenciais e uma vontade profunda de gritar os desatinos do mundo (e do corpo, e da chegada à vida adulta ali ao virar da esquina), criam-se fanzines, formam-se bandas musicais, encontram-se espaços para apresentar e partilhar aquilo que se cria. Várias linhas narrativas vão sendo puxadas desse núcleo basilar, da criação da banda ID’s (que o próprio Nunsky integrou) à fachada vistosa, mas nem sempre sólida, de Lord Demetrius Aldebaran, figura icónica da noite gótica portuense, passando pelos filmes de terror, as noitadas numa casa abandonada, os concertos e pequenos festivais em palcos improvisados e nem sempre com as melhores condições técnicas. Há pormenores de antologia nesta narrativa onde se cruzam tantas histórias, como a boîte (assim se dizia) de pouca fama que, em certas noites, se transformava em caverna soturna povoada por gente vestida de preto que abanava o corpo ao som das bandas que ali se cultuavam, mérito de um empregado com fortes problemas de alcoolismo que recebia a tribo gótica com um misto de interesse pelos lucros momentâneos e uma certa camaradagem. Ou a ida dos Mission ao Porto, para um concerto de sala cheia, que acaba com o seu vocalista a deambular com o grupo de personagens por um Porto cheio de esquinas escuras onde o álcool ajuda ao embate com o pouco sentido do mundo.

Tudo isto se conta numa narrativa solidamente estruturada, que vai agarrando cada pequeno episódio sem nunca perder o quadro geral, e onde as pranchas e a progressão de cenas se organizam meticulosamente. Nunsky tem esta particularidade de trabalhar registos pouco unânimes em termos temáticos, mas sempre com uma mise-en-pâge de pendor clássico, se assim lhe podemos chamar, onde o traço realista e o rigoroso trabalho de luz e sombra são sempre exemplares. É nessa composição meticulosa que cresce uma narrativa visualmente densa, cheia de zonas escuras, sons desanimados e personagens que procuram distanciar-se do mundo que lhes parece pouco propício a uma existência plena. E cresce, também, a certeza de que o que alimenta os laços do grupo pode ser a música, o existencialismo dark ou a vontade de tocar ao vivo, mas é sobretudo uma imensa ternura devidamente escondida sobre as cartolas vitorianas, os pentângulos invertidos e os muitos adereços que encenam a tribo gótica pelas ruas da Ribeira portuense.

Desengane-se quem pensa que este é um livro de nicho, pensado para quem andou pelas noites góticas ou pela música de Bauhaus ou Love and Rockets. Companheiros da Penumbra é uma ode às partilhas intensas da juventude, e não necessariamente da juventude gótica. Por trás das roupas negras, dos adereços e dos ambientes existencialistas marcados por um determinado tipo de música, o que lemos nestas pranchas é universal, não se fecha numa qualquer tribo, ainda que a linguagem partilhada dessa tribo ajude a definir o enredo e a estruturar o seu desenvolvimento. Por outro lado, há neste livro uma presença tão forte da cidade do Porto que impossível assumir a geografia apenas como um elemento narrativo; na verdade, o Porto é aqui mais do que cenário, uma espécie de seiva que dá configuração a estas vivências e aos episódios lembrados. E tal como o grupo de personagens no centro da história, também a cidade é uma memória que se convoca como parte de uma construção identitária, e não tanto como uma nostalgia. Toda a narrativa de Companheiros da Penumbra assenta nesse gesto de olhar o passado, não com o olhar do saudosismo mais plano, mas como parte integrante do que se foi construindo – com as lembranças, as festas, as descobertas e as dores que se foram acumulando – e que agora é também presente, ainda que as roupas pretas e os adereços soturnos tenham ficado esquecidos nas gavetas.

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