Crítica Sara Figueiredo Costa
31 Março 2025

Contos nascidos nos montes

Liberne – Histórias dos montes baldios
Júlio do Carmo Gomes
Desenhos de Rita Faia
Flauta de Luz / Distribuição Antígona

Ainda antes das histórias que compõem este livro, uma nota dá conta de como elas nasceram. Em 2021 e 2023, Júlio do Carmo Gomes passou algum tempo no Gerês, a convite da associação Rural Vivo, para conhecer a realidade, as pessoas, as paisagens, a vida naquele território. Esta nota é importante, porque ajuda a situar uma espécie de raiz, o ponto em que os contos que aqui se reúnem não existiriam, mas existia parte da matéria que ajudou a enformá-los. E, de facto, há uma teatralidade em alguns destes contos que talvez decorra da prática dramatúrgica anterior do autor, mas que parece nascer sobretudo das próprias interacções entre as personagens e entre estas e o espaço. É possível que nasça, até, das próprias performances, chamemos-lhes assim, das pessoas reais com quem o autor dialogou nas suas passagens pelo Gerês, mas o que se reúne neste volume são contos, apresentados enquanto tal, e é neles que a leitura exerce os seus ofícios.

Alguns destes contos constroem-se como fragmento de uma vivência, como se houvesse um corte no registo dos dias e nos fosse dado a ler o que acontece no período que condensa esse corte. Muitas vezes, o que se oferece à leitura é diálogo, como no caso do texto intitulado «Coro das Marianas», e esse diálogo é um registo vívido de um encontro, onde se trocam comentários, alguma maledicência, relatos em modo de dichote de algo que aconteceu:

«– Tem o diabo no corpo.
– Nem o bailarico é como dantes.
– Como é que você sabe?
– A gente aprecia, ao largo.
– Como quem não quer a coisa.
– Se me convidassem…
– Olha a velha!»

Outras vezes, esse registo surge em modo de descrição, ou de interação entre personagens que se cruzam nos afazeres do seu quotidiano, algures num dos espaços comuns da aldeia, e aí a narrativa encena os seus encontros. Em muitos momentos da leitura destes contos, o que atravessa o texto é uma espécie de ilusão documental, como se estivéssemos perante uma observação etnográfica, ainda que essa ilusão se dissipe à medida que as personagens ganham espessura, afirmando-se como protagonistas de uma história – curta, longa, por vezes brevíssima – e não como sujeitos que se deixam observar.

Há contos que fogem a esse registo quase de instantâneo fotográfico, estruturando narrativas mais longas. Um desses contos é «A condena», um texto extraordinário que mergulha nos silêncios, nos não-ditos e nas dissidências de uma comunidade através das histórias cruzadas dos seus habitantes, nunca descurando a descrição psicológica de cada um e cada uma e, sobretudo, explorando com mestria os recuos temporais que vão permitindo desvendar os contornos do enredo: «O suicídio de Inácia encurralara os homens. Com este desfecho trágico, os homens já não podiam escudar-se em conjecturas abstractas. Não havia esconderijo possível. À passividade com que agiram no passado impunha-se agora um gesto de coragem, que vinha tarde demais porque inútil à que penara em vida.» (pg.27)

Reflexão sobre os mecanismos da justiça comunitária e arcaica, denúncia da hipocrisia alimentada pela necessidade de manter as aparências a todo o custo (uma necessidade que, em certas comunidades pequenas e isoladas, é vivida como mecanismo de sobrevivência) e exaltação de uma personagem forte, capaz de manter a sua dignidade sem ceder às leis invisíveis da aldeia, «A condena» é sobretudo um notável pedaço de literatura, do trabalho da linguagem aos diálogos, passando, talvez acima de tudo, pela dimensão psicológica das personagens, onde pululam as contradições, os traumas, as memórias engolidas para não assomarem na primeira oportunidade.

«A condena» será o texto mais extraordinário desta reunião de contos, mas é no conjunto dos textos que se forma uma leitura coerente, onde um território se apresenta por dentro, ou seja, através das vivências dos seus habitantes, não num plano documental, porque o que nos é dado a ler são contos, mas precisamente através dessa engrenagem que a literatura se permite operar, capaz de cruzar fronteiras e etiquetas sobre o que é ou não “verdade”, encenando um mundo a partir do conhecido e exacerbando-lhe certos contornos para melhor nos confrontar com o que vamos guardando por estarmos à mercê do sítio e do contexto onde nascemos e também com o que nos é comum, independentemente do território.

© Rita Faia

Uma nota para os desenhos de Rita Faia, que pontuam algumas das páginas deste livro e que fogem ao registo mais declarativo da ilustração no seu sentido primeiro, complementando o texto sem o querer decifrar e apresentando os seus próprios micro-universos a partir dos muitos fragmentos deixados pelos contos.

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