Crítica Sara Figueiredo Costa 11 Março 2022

Constelação de disfarces

Canción
Eduardo Halfon
Dom Quixote
Tradução de J. Teixeira de Aguilar

Depois de Luto, publicado em Portugal no ano passado, Canción é mais uma etapa no já vasto projecto de Eduardo Halfón em torno da história e da memória, agora focando-se na figura do seu avô paterno que consigo partilhava nome e apelido e no rapto deste às mãos da guerrilha da Guatemala.

O início desta narrativa, fragmentada e com inúmeros saltos cronológicos, instala um tom auto-depreciativo marcado por algum humor. Desfiam-se nesse registo as muitas hipóteses de um escritor levar à prática a arte do fingimento, os subterfúgios que dificultam a decisão de arrumar o que é escrito no campo da biografia ou no campo da ficção, as piruetas que se fazem em público para desviar as atenções do facto de um livro ser e não ser um dos modos mais íntimos de se conhecer parte significativa do que atravessa a cabeça de quem escreve. «Cheguei a Tóquio disfarçado de árabe.» É com esta frase que se inicia Canción e é aqui que se apresenta o narrador, Eduardo Halfon, homónimo do autor (e muito provável admirador das suas piruetas), também escritor, também nascido na Guatemala. O disfarce pretendia justificar um convite equivocado de uma universidade japonesa para a participação num congresso de escritores libaneses. O avô paterno de Halfon era um judeu libanês, chegado a Nova Iorque em 1917, na companhia dos irmãos, a bordo de um navio que partira da Córsega. Mais tarde, instalar-se-ia na Guatemala, abrindo uma loja em sociedade A mesma documentação que atesta estes dados, aponta para outros: «O meu avô libanês não era libanês.» Halfon descobre entretanto que o seu avô nasceu na Síria e que foi o erro ou a embirração do funcionário da alfândega nova-iorquina que o transformou em libanês, identidade que se lhe terá colado para sempre.

A ida a Tóquio nasce, portanto, de um equívoco, mas será o gatilho fundamental para uma outra viagem, a que realmente estrutura este livro e que decorre por entre a memória do narrador e a história do país onde nasceu. Na revisitação da biografia do avô, o narrador confrontará as suas memórias de infância com o que a vida lhe permitiu descobrir entretanto, juntando documentos, histórias de família e outros testemunhos num gesto que se assemelha muito ao focar de uma lente fotográfica. O que se se vê primeiro é pouco nítido, mas o que se verá mais adiante não exibe necessariamente os contornos perfeitos que se desejariam, talvez porque a nitidez a que se aspira é incompatível com a capacidade da câmara – tal como a nossa – oferecer alguma espécie de verdade, indubitável e encerrada.

Nesse confronto entre memórias difusas e descobertas mais ou menos acidentais, o narrador estabelece com a firmeza possível o episódio central da vida do seu avô: o sequestro, em 1967, às mãos de um grupo ligado à guerrilha guatemalteca. Desaparecido durante mais de um mês, acabará por regressar a casa depois de um cativeiro do qual guardará memórias díspares, as do medo e do isolamento, mas também as conversas partilhadas com um dos sequestradores ou as cantigas escutadas na voz de um outro dos seus guardas forçados. Canción era o nome de um dos seus sequestradores, figura que acabará por assumir um papel importante na constelação de afectos do sequestrado e, quase como uma herança, na do próprio narrador.

Canción vai crescendo como uma narrativa aparentemente desordenada, juntando fragmentos uns aos outros, sem numeração ou identificação, numa espécie de jogo que se aproxima muito de um modo verbal de narrar uma história familiar – há sempre quem acrescente detalhes, a memória aplica as suas armadilhas aos mais incautos e a necessidade de ir intercalando tempos e espaços supera a ilusória ordenação de tudo. Apesar de fragmentário, o texto não se perde quando rejeita a cronologia bem arrumada e os detalhes omniscientemente alinhados, assumindo, pelo contrário, que omnisciência e ordem cronológica são coisas inalcançáveis quando se trata da própria memória à procura de ordenar o passado, quase sempre a partir da infância e das heranças de gerações anteriores. Trabalhando o ritmo de modo exímio, Canción faz desfilar esses fragmentos num equilíbrio entre história familiar, informação de contexto sobre a Guatemala e sobre a presença de famílias de origem judaica no país (vindas do Médio Oriente e da Europa de Leste no início do século XX) e a consciência, que cresce à medida que a narrativa avança, de que tudo o que podemos recuperar do passado atravessa sem contemplações o filtro da nossa própria história e do modo como a construímos. É essa consciência crescente que estrutura o projecto literário de Eduardo Halfon, uma enorme teia de episódios, invenções e factos aos quais o gesto de escrever atribui um lugar e um sentido que em nenhum outro gesto teriam concretização. O disfarce libanês que abre este livro não é outra coisa que não um texto à procura da sua verdade.

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