Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Abril 2021

Conjurar fantasmas

Luto
Eduardo Halfon
Dom Quixote
Tradução de J. Teixeira de Aguilar

Escrever a partir da história do seu avô paterno, um judeu polaco que sobreviveu a Auschwitz, é um projecto assumido por Eduardo Halfon e contextualizado pelo cruzamento dos temas da linguagem, da memória e da identidade. O projecto tem-se revelado em livros como El Boxeador Polaco, entre outros, e em Luto adquire mais uma etapa, confirmando que o percurso não é linear, organizado ou cronológico. Essa é, aliás, a característica fundamental de qualquer imersão na memória – própria ou alheia, por vezes ambas – e Halfon assume-a no conjunto da sua obra e na construção deste romance em particular, em que autor e narrador se confundem.

A caminho do antigo chalé dos avós, onde passava os fins de semana até aos dez anos, junto ao lago Amatitlán, na Guatemala, o narrador de Luto não sabe como preparar-se para o embate entre dois tempos. Quando atravessa o portão dessa antiga casa, recebido por Don Isidoro, o homem que já trabalhava na manutenção do edifício quando Eduardo ainda era uma criança, os tempos fundem-se e já não há retorno possível. A conversa com Don Isidoro recorta-se entre episódios que Eduardo partilhou com o irmão, a visão do seu outro avô, libanês, fumando às escondidas no quintal, a fotografia nunca referida de um menino chamado Salomón, que já estaria morto antes do narrador existir, o relógio digital oferecido pelo avô que deu ao narrador uma primeira ilusão sobre o controle do tempo:

«O tempo, comecei a convencer-me, era uma coisa real e indestrutível. Tudo no tempo sucedia como uma linha recta, com um ponto de início e um ponto final, e agora podia localizar esses dois pontos e medir a linha que os separava e escrever essa medida no meu pequeno caderno espiral.» (pg.18)

O relógio que parecia ordenar o mundo acabará no fundo do lago e essa disrupção no equilíbrio dos dias infantis será, vista à distância de muitos anos, o início de uma consciência cada vez mais aguda sobre a impossibilidade de ordenar o passado e, de um certo modo, de confiar no relato que dele fazemos (ou nos fazem). O Salomón da fotografia proibida confundir-se-á com uma criança afogada no lago e essa criança, terror escondido em muitos cantos da infância do narrador, há-de revelar-se uma série de outras crianças, um medo afinal incerto e sem rigor, mas também um medo cheio de razão. Os segredos mantidos pela família podem não revelar, em si, episódios escabrosos ou impossíveis de revisitar, mas tendem a assumir contornos abissais para uma criança, talvez pela impossibilidade de os compreender plenamente, ou pela inevitabilidade de os misturar com medos próprios, fantasias e situações inexplicáveis. É nesse desequilíbrio que se joga o engrandecer dos mitos, tantas vezes transformados em elementos fundacionais para quem com eles cresce.

Luto é uma deambulação pela memória a partir dos seus espectros, uns atestados pela transmissão familiar e pela documentação, outros apenas confirmados por quem os conjura.

E todos existindo simultaneamente no passado e no presente, sem respeitarem a linha cronológica que os arrumaria lá longe, no tempo em que pisaram a terra, ou no tempo em que alguém os criou nesse limbo incerto a que às vezes chamamos autobiografia. É uma parte da sua história familiar que Eduardo Halfon conta neste romance, em capítulos breves onde a linguagem se assume como trabalho de pesquisa e confronto, sempre com uma honestidade assombrosa perante os seus próprios abismos e lugares de névoa, mas é sobretudo um mergulho desamparado naquilo que julgamos saber sobre nós próprios. Uma revelação turbulenta que, não sendo universal nos seus pequenos detalhes, não deixa de nos pertencer colectivamente como gesto tantas vezes adiado e quase sempre inevitável.