Cigarra
Shaun Tan
Orfeu Negro
Tradução de Carla Oliveira
Shaun Tan é um dos grandes autores de álbuns ilustrados a nível mundial. Vencedor do Prémio ALMA, o escritor e ilustrador australiano conta com vários livros editados em Portugal. A sua ilustração explora um universo fantástico, onde máquinas e monstros caminham lado a lado. Grandes planos, ângulos esquinados, paletas depressivas ou agressivas, tudo contribui para um posicionamento, seja emocional, reflexivo ou crítico, em relação à condição humana. A estranheza dos contextos surrealistas dá maior destaque a questões fundamentais para o indivíduo, como a desesperança, a condição de estrangeiro, ou, neste caso, a desumanização pelo trabalho. Mesmo nas narrativas mais absurdas, Shaun Tan compromete-se com um sentido filosófico, ao mostrar a arbitrariedade das regras, o lado risível e aleatório da vida. Fá-lo através de alegorias, muitas vezes poéticas, que resultam do diálogo entre texto e imagem (no caso de Emigrantes, trata-se de uma narrativa exclusivamente visual).
Cigarra corresponde a estas características. Trabalhadora numa empresa durante dezassete anos, Cigarra cumpre a sua função exemplarmente, apesar das constantes humilhações e violações dos seus direitos: não pode usar a casa de banho, sai tarde porque os colegas atrasam o trabalho, nunca teve direito a uma promoção, é agredida. Até ao clímax narrativo, em que se dá uma reviravolta surpreendente, a cigarra verde é a única que tem cor num espaço labiríntico, cheio de esquinas e cubículos, todo ele cinzento, opressor, desumanizante. O texto elide artigos, verbos, proposições. Parece telegráfico. Porquê? – É uma pergunta que o leitor pode colocar ao texto. Eventualmente, por a cigarra não ser considerada humana, poderá não dominar o discurso na íntegra. Poderá a cigarra ser a alegoria do estrangeiro? Ou ser apenas um discurso funcional, automático, também ele desumanizante.
Esta Cigarra contraria o estigma moral da fábula que a representa como a que privilegia o presente e não trabalha para acautelar o futuro. Não é, no entanto, respeitada.
O final surpreende e levanta questões. Como muitas vezes acontece com a obra de Shaun Tan. O certo é que a narrativa acaba com esperança. Só não sabemos se a humanidade também está abrangida.