Brasil: Independência e idealização
Com o bicentenário da Independência do Brasil a aproximar-se, as comemorações preparam-se para glorificar um discurso que deixa de lado os milhões de pessoas escravizadas e os seus descendentes, no passado como no presente.
No site Coletivo Leitor, Jurandir Malerba escreve sobre a colonização do Brasil, a apropriação das terras e a escravidão como garantia da manutenção de uma classe dominante que se foi adaptando aos tempos sem nunca abdicar dos seus privilégios. «Nesse processo de longa duração dos três primeiros séculos da colonização portuguesa na América, se assiste à formação de uma classe social que se distingue e se identifica a partir de interesses econômicos de classe proprietária de terras, de escravos e beneficiária maior da condição colonial do Brasil. Quaisquer traços identitários e credos políticos muito rígidos eram fluídos para essa classe. Ela foi monarquista convicta e fiadora da unidade do império enquanto esperava de Lisboa as nomeações e distinções (como títulos e comendas honoríficas). Foi republicana quando vislumbrou no republicanismo a força que precisava para enfrentar a pressão tributária da Coroa, que começou a ameaçar seus negócios (como foi o caso na Inconfidência Mineira) – depois da sangrenta revolução de São Domingos (Haiti), que eclodiu em 1791 e durou até 1804. Essa classe dominante em formação no Brasil percebeu que uma república não seria solução, mas uma ameaça à sua condição e seus privilégios, e se reconciliou com a Coroa. Nos anos da Independência, ela aderiu à solução monárquica quando percebeu que a monarquia seria a salvação para seus negócios comerciais na Europa e aliada fundamental contra os inimigos domésticos. E finalmente abraçou a Independência, pela via conservadora, quando a metrópole, em vez de alavanca, mostrou-se de novo obstáculo a seus interesses. Essa classe dominante de origem portuguesa, essa aristocracia rural forjada no tráfico humano e na escravidão, de certo modo foi tomando consciência de si enquanto formulava seus planos para o Brasil, mas sempre em seu próprio benefício. À época da Independência, ela tinha plena consciência de que a base de seu poder estava na terra e na escravidão.»
Escrito com as celebrações dos duzentos anos da Independência do Brasil em vista, a 7 de Setembro do ano que vem, o texto de Jurandir Malerba lembra que as versões institucionalizadas da história tendem a criar narrativas únicas e idealizadas, apagando o papel e a existência de tantos e tantas que foram, na verdade, os principais protagonistas: «Hoje, às vésperas do marco do bicentenário da Independência, devemos ficar atentos. Certamente vão aparecer versões romantizadas desse processo, de como ele foi pacífico, ordeiro e benéfico para o “povo brasileiro”; do quanto devemos àqueles homens sábios e heróicos, às instituições monárquicas, à “pátria-mãe portuguesa”. Versões que se arrogarão serem as verdadeiras histórias, as histórias não contadas, aquelas que seu professor de história nunca lhe contou. Desconfie de todas. Desconfie dessas narrativas. Essas versões elidem a história dos grandes contingentes de homens e mulheres que não só não foram convidados a participar das grandes decisões, como a Independência, mas que foram oprimidas e silenciadas por aqueles que se beneficiaram delas.»