A rede infinita

Banzeiro Òkòtó
Eliane Brum
Companhia das Letras
Em 2016, depois de muitas idas a diferentes regiões da Amazónia para entrevistas e reportagens, a jornalista Eliane Brum caminhava pelas ruas de Altamira com uma amiga quando percebeu que a sua vida iria mudar, porque ela própria mudaria – ou já tinha mudado, mas ainda não percebera. Deixou São Paulo, onde vivia, e mudou-se para Altamira, no Pará. A informação surge logo no início, mas este livro não é sobre Eliane Brum, não no sentido de ser uma autobiografia ou o registo de um acontecimento pessoal e dos seus desenvolvimentos. Por outro lado, este livro é sobre Eliane Brum, na medida em que ninguém existe sozinho e o que aqui se conta e se regista é sobre todas as pessoas (sobre todos os seres, na verdade), mesmo as que não sabem que a Amazónia é o centro do mundo, pelo menos no sentido que a autora atribui a essa geo-localização, tão política como emocional.
Quando o cantor Sting andava pela Amazónia na companhia do líder indígena Raoni, lá pelos anos 80 do século XX, o tempo já era de urgência. Para muita gente, sobretudo gente que vivia nesse espaço fluido a que podemos chamar Norte global, talvez tenha sido apenas uma campanha para proteger as árvores, e houve mesmo quem achasse que era um golpe de marketing a apelar ao exotismo, mas aquilo de que se falava era outra coisa. O pulmão do mundo não é expressão metafórica, a ciência já o confirmou há muito e se não demos grande importância à preservação desta imensa área florestal isso só confirma que andamos há décadas em negação e que talvez sejamos, realmente, a espécie menos inteligente das tantas que habitam este planeta.
A referência às visitas de Sting à Amazónia é apenas um dos muitos episódios que se cruzam neste Banzeiro Òkòtó. E nem é o mais relevante, mas talvez começar por aí esclareça uma das linhas que estruturam este livro: o tempo para campanhas, sensibilizações, avisos, acabou. O que se lê nestas páginas faz-nos perceber que teria sido melhor darmos ouvidos a Raoni e Sting nas suas digressões pela floresta, mas não o fizemos; agora, estamos num outro patamar. A emergência climática atravessa, sem surpresa, estas páginas, mas cruza-se com vários outros factos que ajudam a perceber que a crise não é uma questão de usarmos palhinhas de plástico, ou de levarmos diligentemente os resíduos ao eco-ponto, e também que o ponto de não retorno a que chegámos obriga a uma mudança. Não se trata daquela mudança que teríamos feito se quiséssemos dar ouvidos aos cientistas, porque essa teria sido uma mudança escolhida, ponderada (e mais acertada, seguramente). A mudança a que estamos obrigados vai acontecer, queiramos ou não. Para Eliane Brum, a resposta à dúvida sobre como enfrentar o que já aqui está passa pelos povos originários da floresta, bem como pelas comunidades que ao longo dos séculos ali se instalaram, aprendendo a viver como parte integrante e igualitária de um sistema natural e não como suas predadoras. Para além dos indígenas, então, a autora explica que há que contar com as comunidades ribeirinhas e as comunidades quilombolas, e a justificação é simples. Por um lado, essas pessoas são também floresta, abordagem que é frequentemente sublinhada ao longo destas páginas, não apenas para descrever um modo de viver, mas também para apontar uma solução. Por outro, enquanto nos países ditos desenvolvidos se ouve falar da iminência de um fim, não necessariamente do mundo, mas da nossa sobrevivência nele, estas pessoas e comunidades há muito que passaram essa fase. Nalguns casos, há séculos, como diz o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, citado pela autora:
«Os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles acabou em 1500.»
Entre esquemas de madeireiros, que se instalam em terrenos florestais (desmatam ilegalmente, colocam bois a pastar e assumem a posse da terra) e as grandes obras para construção de centrais hidro-eléctricas, Brum vai explicando como se destrói uma floresta. A par com essa destruição, visível a partir de fotografias aéreas e também nos dados sobre redistribuição atmosférica de água e aquecimento global, arruinam-se as relações que as comunidades locais mantinham entre si e com o lugar onde habitam, criando situações sociais de desenraizamento e miséria. No livro, acompanham-se várias histórias de vida que assim decorreram, até as pessoas que sempre viveram em equilíbrio com o que as rodeava e não passavam fome ficaram sem as suas casas, muitas vezes inundadas pelas novas grandes barragens, e descobrirem-se pobres na periferia de alguma cidade para onde foram obrigadas a mudar-se (deslocalização, diz-se na gíria política), sem meios de subsistência, doentes com a exposição à poluição extrema a privadas das suas redes sociais e emocionais.
A contextualização é uma das marcas de Banzeiro Òkòtó, que não cede um palmo a explicações simplistas ou maniqueístas. Tal como a floresta comprova, as coisas não existem sozinhas, sejam elas árvores, pessoas ou desigualdades sociais. O título junta duas palavras, a primeira referindo-se a uma movimentação específica das águas de um rio (o Xingu, largamente citado neste livro, mas não só), uma tormenta localizada que tudo agita, a segunda remetendo para um caracol de concha cónica cujas linhas registam uma espécie de história em espiral. Entre a agitação e a possibilidade de contar histórias como forma de resistência, chegamos ao centro do mundo. O termo é metafórico, naturalmente, mas só até certo ponto. Em 2019, a autora ajudou a organizar um encontro cujo lema-título era Amazónia Centro do Mundo e que colocou em diálogo várias lideranças indígenas, ribeirinhas e quilombolas com activistas de outras partes do mundo, nomeadamente da Europa. E a centralidade da Amazónia confirmou-se, nas intenções e nas soluções:
«Amazónia Centro do Mundo é um movimento político que propõe como primeira premissa o deslocamento do que é centro e do que é periferia, recolocando a Amazónia e outros enclaves de natureza como centros geopolíticos do mundo humano no planeta.» (p.355)
Banzeiro Òkòtó traz uma leitura verdadeiramente global para a discussão sobre a crise climática e não o faz apenas contextualizando os muitos fios de problemas que se cruzam nesta questão, nem só pela denúncia do tanto que está a ser destruído sob o disfarce de um desenvolvimento sustentável – e esse tanto é, desde logo, a floresta, mas também milhares de vidas, milhares de corpos, sistemas sociais e comunitários, uma ideia de futuro. Eliane Brum é uma repórter atenta, curiosa e rigorosa no modo como recolhe informação, mas sobretudo atenta às pessoas que vai escutando. Este livro não é uma reportagem, mas reproduz partes de trabalhos anteriores feitos nesse contexto e utiliza as mesmas ferramentas que se exigem a quem reporta para enquadrar o que vê e ouve, acrescentando-lhe o que sente e vive perante esses acontecimentos. É um livro total, ainda que se foque numa parte do mundo. Ou precisamente porque se foca numa, nessa, parte do mundo.