A menina que queria escrever histórias
Rosário Alçada Araújo
Teresa Cortez
APCC
Neste encontro feliz entre texto e ilustração traça-se uma narrativa sobre o poder da imaginação. Joana, uma criança contadora de histórias, bloqueia quando aprende a dominar a escrita. Perante tamanho dilema, outra contadora de histórias, a sua vizinha Eufémia, apresenta à pequena quatro cores, quatro símbolos e quatro momentos estruturais da narrativa. Neste embrulho reside mais do que um catalisador para o sucesso, mais do que uma motivação. Aqui se reúne a lentidão da escrita nas canetas de tinta permanente, a revisão pelo lápis de carvão que traz camadas novas ao produto escrito, a narrativa oral e o poder da memória enquanto registo.
As explicações da idosa, em jeito de manual de instruções, valorizam o ato de narrar e a organização que subjaz ao processo, seja ele escrito ou oral. Nesse sentido, o facto de ser uma idosa analfabeta a encontrar os recursos para desbloquear o processo de escrita da menina também não é de somenos importância. Apesar da singeleza com que cada cor é apresentada, em cada uma se encerra uma parte estrutural da narrativa: o início, a peripécia, a progressão da ação e o desenlace. A par, estados de espírito e emoções que se encontram na história e que podem, ou não, nascer em quem a escreve.
Rosário Alçada Araújo encontra soluções subtis para grandes temas e recorre sempre a uma iconografia do passado. A memória reside nas pessoas e nos objetos e as formas de tratamento não revelam, por norma, conflitos relacionais. Tudo tende para o universal e intemporal. Teresa Cortez acompanha-a com as linhas azuis dos cadernos que fazem lembrar, aos adultos, os primeiros e idos anos de escola. Entre a simplicidade da paleta de cores, a referência a Onde vivem os monstros de Maurice Sendak ou a Capuchinho Vermelho e um sentido lúdico do ato de escrever, a ilustração casa bem com o texto. A coerência ultrapassa a representação das personagens num contexto naïf, que também se encontra na semântica textual, e atinge um diálogo de complementaridade. Se Rosário Alçada Araújo tende a um certo fechamento moral, Teresa Cortez abre as páginas à expansão imaginária do espaço, sugerindo contextos contíguos. O dilema resolve-se e Joana imerge em folhas e palavras que partilha com a vizinha, esquecendo-se de tarefas domésticas e afins, numa evidente apologia do ato de narrar.