A festa que foi e a que nunca chegou
Na Terra dos Outros
Manuel Abrantes
Companhia das Letras
Romance de estreia de Manuel Abrantes, Na Terra dos Outros compõem um retrato de um certo Portugal das últimas décadas, atento às camadas da população de onde não costumam sair protagonistas literários e ao modo como as muitas vertentes de uma sociedade se vão cruzando e definindo as vidas de cada pessoa.
Com o início da narrativa situado antes do 25 de Abril de 1974, o país que aqui se conta é o dos pobres que tinham a obrigação de se sentir honrados, da obediência às hierarquias nacionais bem definidas e da servidão a que parte da população se sujeitava por não ter (ou não acreditar ter) alternativa. Maria do Carmo é a protagonista desta história, contada num registo narrativo escorreito e sem grandes sobressaltos temporais, começando no momento em que a sua família a entrega a um casal cuja morada principal era em Lisboa: «Sabia que devia tratar a velha por Minha Senhora e o velho por Senhor Doutor. Mais não sabia.» (pg.14). A ida de Maria do Carmo para Lisboa, ainda adolescente e a não conhecer mais do mundo para além da aldeia beirã onde nasceu, é a história de muitas raparigas cujo destino era o de “servir”. Talvez as aspas sejam apenas cuidado contemporâneo, porque esse era o termo e essa era a realidade: crianças que eram afastadas da família e colocadas em casa de “senhores”, com a missão de assegurarem as tarefas domésticas e de se transformarem em criadas. E crianças que eram meninas, não só porque às mulheres estava reservado o trabalho da casa, mas também porque se assumia, em silêncio, que a missão destas “criadas de servir” podia ir muito além das tarefas domésticas, alastrando-se num sem fim de sujeições a violências várias, entre elas a sexual. E tudo isto era assim, aceitável, “normal”, porque era esse o lugar atribuído pelo poder a cada uma destas pessoas: aos pobres cabia servir, aos senhores, mais ricos ou mais remediados, ser servidos, inclusive nos seus desejos mais íntimos. A protagonista, então, é uma destas crianças e há-de crescer em Lisboa, começando por viver sob o medo de falhar o cumprimento de alguma regra e avançando, com o tempo, para uma vontade de descobrir, e de se descobrir, que tem paralelo, no texto, com a aproximação da liberdade chegada com Abril.
À personagem de Maria do Carmo reserva-se muito mais do que a simples encarnação da figura-tipo da “criada”. O texto foge disso, e com mestria, colocando a personagem no centro de uma narrativa que podemos chamar de crescimento: da protagonista, certamente, mas também dos espaços sociais que habita ou por onde passa. É assim que surgem os novos bairros nas aforas de Lisboa, a construção de Alfornelos, na Amadora, com a erradicação de barracas a dar lugar à habitação social, a emigração como saída possível para as várias crises económicas que vão assolando o país, os trabalhos precários e sem direito a Segurança Social, os preconceitos de diversas naturezas que vão mirrando em clara sintonia com uma certa ideia de avanço civilizacional ou crescendo à mercê de populismos vários, conforme o contexto e os momentos.
Na Terra dos Outros é um promissor romance de estreia. Há fraquezas por enfrentar, como a insistência descritiva que em muitos momentos apaga do texto a possibilidade de este se abrir ao diálogo com a leitura: se tudo o que uma personagem sente é detalhada e verbalmente descrito, sobre pouco espaço para os sentidos múltiplos, as camadas complexas e o cumprimento da escrita no seu destinatário. Ainda assim, à semelhança das várias pessoas que povoam este texto, Maria do Carmo é uma personagem ricamente caracterizada, psicologicamente complexa e, apesar de representativa de um grupo extenso de pessoas que viveram experiências semelhantes, imune a generalizações. Do mesmo modo, a narrativa de Manuel Abrantes tem esta particularidade de se deixar localizar cronologicamente sem nunca ceder ao registo de crónica histórica. Na Terra dos Outros não tenta ser o testemunho fiel dos momentos mais relevantes das últimas décadas de um país, mas antes contar uma história (que também é parte da história desse país) cujo ângulo é pouco privilegiado nas ditas crónicas históricas. Fazendo-o, cumpre um outro desígnio que parece nascer neste texto, o de vincar as diferenças sem nunca fugir de reconhecer as semelhanças entre o presente e o passado. Talvez nem se trate de semelhanças, mas antes de persistências, coisas que vão permanecendo mesmo que se lhes mude o aspecto, a nomenclatura e a percepção. De um certo modo, as “criadas” de outros tempos encontram certos reflexos nas diferentes fases da vida de Maria do Carmo e em várias das pessoas que a acompanham, mais intimamente ou apenas como conhecimentos quotidianos, gente que trabalha muito a troco de muito pouco, com salários precários, sem assistência na doença, sem habitação digna ou sequer garantida.
Nada disto desvaloriza o que se conquistou, essa possibilidade de Maria do Carmo aceder a uma vida para lá da obrigação de “servir os senhores”, reflexo de todas as outras possibilidades inauguradas com a Revolução dos Cravos. Na Terra dos Outros não é um julgamento, um ajuste de contas com a história ou um balanço do que andámos para aqui chegar. É uma história, bem contada e longe de simplificações, que coloca a leitura na encruzilhada onde ela melhor se concretiza, entre a festa e a raiva, de olhos abertos para os sonhos cumpridos e para os desejos defraudados.