«A felicidade acontece quando a alegria fica solene e acomodada»
No dia 18 de dezembro de 2024, a romancista Lídia Jorge recebeu o doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Aveiro. A Blimunda publica o discurso que a autora de Os Memoráveis fez durante a cerimónia de entrega do reconhecimento.
1.
Em primeiro lugar, desejo agradecer a todos os que contribuíram para ter sido chamada neste dia a fazer parte da vossa comunidade e a sentar-me a vosso lado. A partir de agora sentir-me-ei próxima e cúmplice dos destinos desta Universidade, tão jovem quanto prestigiada. É uma honra imensa que me concedem.
Permitam-me que saúde também os amigos que vieram comigo e que aqui estão presentes. Somos um grupo unido, formamos uma muralha, para onde um vai vamos todos, mesmo quando não vamos e temos de ficar à distância. Escreveu Montaigne sobre a amizade que ela é a mais alta e nobre expressão do gratuito, isto é, do que não tem preço. Obrigada, pois, por terem entendido que este é um momento importante na minha vida, que assim se transforma na vossa própria vida como amigos. Digo-o com simplicidade porque o contrário, como sabem, tem sido, de igual modo, válido.
Por redobrada razão agradeço que o meu marido tenha querido estar presente. Desta vez, como desde há muitos anos, ele me resguarda e protege das minhas exorbitâncias e fantasias. No dia em que o Reitor Paulo Jorge Ferreira me telefonou anunciando que me iria ser atribuído este doutoramento, o Carlos Albino ajudou-me, mais uma vez, a que eu transformasse a alegria em felicidade. Agradeço-lhe muito por isso.
Como se sabe, a felicidade acontece quando a alegria fica solene e acomodada. A palavra felicidade provém do grego Phyo, étimo cujo significado é produtivo, fecundo, fértil, útil. Ao ouvir agora o balanço que a Professora Doutora Isabel Cristina acabou de fazer, sinto-me feliz por ver que os livros literários, em seu entendimento, são não só matéria útil, mas sobretudo uma experiência. Uma experiência verdadeiramente essencial que acompanha os outros saberes e lhes confere um sentido.
Elogio esta Universidade pelo facto de encarar a Literatura não como um adorno, ou mesmo como uma inutilidade, como acontece em tantos institutos de Ensino Superior, mas antes como matéria que está sempre a criar sínteses sobre o tempo que passa, e o tempo que se deseja. Um saber próximo do informal, que não nega a formalidade do método da História que interpreta o passado, mas resulta de um processo que está sempre a propor uma nova História para o futuro. A Literatura inclui uma matéria que não vive de nenhum saber científico preciso, mas interpreta os caminhos por onde as ciências humanas, as ciências puras e as aplicadas, e as suas realizações tecnológicas prometem fazer os seres humanos passar. A Literatura é um saber libertário, assistemático que, através da narrativa de histórias humanas, coloca frente a frente os lados submersos das nossa vidas, os cantos obscuros, aqueles que não encontram espaço à luz do dia na labuta diurna onde nos é exigida a conduta pragmática, racional, consciente, laboral, contabilística, sempre certa e sempre cada vez mais triunfante. Mas nós, gente, também somos outros.
É dessa componente outra, a escondida, omitida do palco da existência pública, desde que deixamos de ser crianças, que trata a Literatura e a Poética. É essa relação de intimidade que se estabelece entre os leitores de um mesmo livro, em que sem nos conhecermos nos tocamos, ou como diz Julia Kristeva, nos irmanamos através do subconsciente, e eu acrescento, nos abraçamos uns aos outros, e criamos clãs subversivos. É dessa matéria outra que se constrói a Literatura, arte cuja matéria prima engloba não só uma parte da subjectividade mas toda ela por inteiro. É, pois, uma honra ser integrada na genealogia de uma Universidade que tem como porta-voz, no dia de hoje, alguém que defende esta tábua de salvação, num tempo em que falar de pós-literatura significa falar perigosamente de pós-humanidade. Literatura e Humanidade são as duas faces do mesmo rosto. Por isso, nós que aqui estamos, brandimos uma bandeira de confiança em nós próprios, numa altura em que a cada dia que passa, mais e mais, páginas ditas literárias, produzidas pelos Chats, vêm ter connosco e nos oferecem a imagem de uma vida falsa. O que significará, se assim continuarmos, que o inventor das palavras terá desistido da sua natureza humana, delegando num coração artificial o poder da sua invenção. Pelo contrário, apostando em conjunto na nossa figura dupla de criaturas criadoras, estamos ainda todos do mesmo lado.
2.
Mas também gostaria de dizer que parte da satisfação de ter sido chamada para este acto resulta do facto de que sempre que regresso a uma Universidade me sinto renascer. Na minha juventude, fui feliz na Universidade. Recordo professores extraordinários, aulas inesquecíveis. Muitos dos meus professores continuam na minha vida e fazem parte das decisões mais determinantes que tomei ao longo dela. A sua sombra benigna caminha adiante de mim e eu sigo-os. Muitos dos passos que dou hoje ainda são os passos dos meus mestres. Sei de saber feito que um professor baço embacia o mundo, mas um professor entusiasta ilumina-o, muito para além da sua própria vida e para além da sua própria obra. Parte do carácter do mestre permanece em nós como herança, e passa para os que vêm depois, através de quem a vai receber, mesmo quando já não se conhece o nome de quem ofereceu de si o que tinha para dar. E, sim, eu tive sorte.
Nos anos sessenta, na Faculdade de Letras de Lisboa, fui aluna de professores como Lindley Sintra, Peral Ribeiro, o poeta Tomaz Kim e Maria Vitalina Leal de Matos, e Maria Alzira Seixo, o antropólogo luminoso que foi Jorge Dias, e Vitorino Nemésio e Jacinto do Prado Coelho… Mas, de entre todos, um longo friso amorável, aquele que ficou a meu lado, grande companheiro involuntário, foi o professor de História da Cultura Clássica, um jesuíta, Manuel Antunes.
O Padre Manuel Antunes era um homem de fraca estatura, todo vestido de preto, pasta redonda de cheia, quase rojando pelo chão, uns sapatos imensos, rosto encoberto por óculos redondos, os olhos miúdos. E no entanto, quando pisava o estrado e falava do que sabia, a sua figura ocupava todo o Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras de Lisboa. Nós, raparigas, vivíamos apaixonadas pelo professor, a sua sabedoria era o nosso amante. Nunca me hei-de esquecer da sua voz quando levantava o braço e reproduzia a frase do templo de Apolo em Delfos – Homem, conhece-te a ti próprio. E continuava, num tempo em que as mulheres não se ofendiam por serem incorporadas na categoria do homem. Dizia ele, homem, lembra-te que és homem, apenas homem, e nada mais do que homem. E sem o explicitar, invectivava assim os demagogos e os tiranos que nos rodeavam. E o regime sabia e fazia-lhe a folha.
Ou quando falava da modernidade científica dos pré-socráticos, e evocava o pai da dialética, Zenão de Eleia, relacionando os seus paradoxos sobre o tempo e o espaço com a teoria da relatividade. Agora, à distância, compreendo que, filosoficamente, havia um salto mortal na associação que estabelecia, mas o princípio da incerteza que nos transmitia fazia de nós alunos pessoas atentas à voz daqueles que proclamavam verdades definitivas. Lembro-me de que era na Poesia que Manuel Antunes buscava a síntese, e reproduzia de cor o início do célebre poema de Paul- Valéry , aquele que abre com a referência à rápida corrida de Aquiles em competição com a lenta tartaruga. Declamava ele – Zenão! Cruel Zenão! Zenão de Eleia/ Feriste-me com a tua flecha alada/ Que vibra, voa e que não voa nada/O seu som me cria e a sua flecha mata/ Ah! Como é grande a sombra da tartaruga/ para a alma/ Aquiles imóvel em grandes passadas…”
O seu entusiasmo – entusiasmo, palavra que dizia significar em grego, estar com os deuses – passava para nós, muitas vezes sem atingirmos a compreensão literal das suas palavras. Apenas sabíamos que ali estava alguém que havia estudado a Odisseia durante dez anos, e nos dizia que mesmo assim sabia muito pouco. Nós apenas tínhamos dezoito anos e o assombro de ter empregue dez a estudar um livro, fazia-nos associar a sabedoria ao estudo, a pesquisa à paciência, a ambição do conhecimento à humildade da consciência da limitação da inteligência. Também pela sua mão, pela primeira vez, compreendi a lógica do fim dos impérios, que eu viria a deduzir mais tarde que se desfazem não por assassínio mas por suicídio. Comecei a perceber quando nos falou de Oswald Spengler e de Arnold Toynbee. Os movimentos de avanço e recuo que então mencionava, em pleno tempo de Guerra Fria, afinal não passaram como julgávamos, regressam agora com nova linguagem, cumprindo tragicamente, nos nossos dias, a profecia que nos ensinava, ao facultar-nos a chave para a interpretação do desejo de glória e conquista de território que acompanha a lógica dos impérios.
Aliás, aquelas aulas duraram escassos oito meses, e no entanto também foi com Manuel Antunes que, pela primeira vez, compreendi que um estudioso podia falar com entusiasmo de pensadores tão diferentes quanto Engels, Marx, ou Sartre, e Emmanuel Lévinas e Teillard de Chardin, com a mesma veemência, e eu entendi que isso significava liberdade de pensar. Entusiasmo pelo pensamento diverso, e mesmo oposto. Com as poucas noções de que dispunha, percebi que aquele homem procurava uma totalidade abrindo todas as portas para o entendimento que pudessem surgir à sua frente. Mas talvez o maior contributo que recebi desse professor, tenha sido a sua definição de mito.
Manuel Antunes passou uma aula inteira a definir mito, mito para os antigos, os clássicos, os modernos, e no final apresentou a sua própria definição – Mito, disse, é toda a história que tende para a transcendência. Escrevi então essa frase no meu caderno escolar. Porque guardei essa definição não sei bem, mas sei que, um tanto de forma inconsciente, fiz dela a minha meta. Reforcei-a quando, mais tarde, deparei com uma certa ideia de Adorno que me tem acompanhado. Disse Adorno – À luz da transcendência, toda a História surge naturalmente deformada. Ora a Literatura é isso mesmo, consiste em tentar atribuir transcendência ao que ocorre na imanência da vida – E tudo isso significa que escrever, escrever poeticamente, implica deformar a História à procura de uma outra lógica para a razão da Humanidade. Sacudir o peso da História, libertar-nos das cadeias do destino que ela comporta.
3.
Permitam-me então que num dia muito particular como é este, acrescente o relato de uma episódio também ele singular e do foro íntimo – Em 2014 publiquei um livro com o título de Os Memoráveis. Foi publicado em França em 2016. Em 2018 participei com outros escritores portugueses de um festival que se realiza todos os anos pela Primavera, em Toulouse, o Festival “Le Marathon des Mots”. Pelo que me dizia respeito, uma das actividades consistiria na leitura de umas páginas de Les Mémorables na célebre Capela das Carmelitas. A actividade iria decorrer numa hora qualquer pela manhã. Pensei que ninguém iria lá estar. Porém, quando eu e a editora, Anne-Marie Métaillié, chegámos, encontrámos o recinto repleto.
Na verdade quem iria ler seria Marie-Christine Barrault, actriz lendária, muito amada pelos franceses, uma das mulheres de Roger Vadim. O seu estatuto de pessoa célebre estaria, por certo, a chamar todo aquele público. Era bom. Procurámos um lugar, não havia lugar. Por fim descobrimos que em pleno transepto, lá no cadeiral, estavam dois assentos vagos. Anne-Marie disse – “São para nós, reservaram-nos”. Estávamos a sentar-nos quando veio uma jovem da organização que nos expulsou. Atrás de nós já estavam em pé dois cavalheiros da Mairie de Toulouse. Envergonhadas, atravessámos a multidão e regressámos à porta. Encostámo-nos à parede. Passados uns bons minutos, entrou no local onde antes teria sido o altar, a actriz célebre. Marie-Christine, muito elegante, elevou um molho de papéis que trazia consigo à altura dos olhos e começou a ler. Tratava-se do capítulo XII de Os Memoráveis. A sua interpretação era perfeita.
Esse capítulo sustenta-se da figura de El Campeador, a transfiguração de um dos capitães da Revolução de Abril, que naquele passo anda a treinar um cavalo junto das ondas para no dia seguinte fazer uma suposta entrevista para a CBS News, entrevista que nunca irá acontecer. Mas ele treina o cavalo no meio das ondas, crente que dentro de poucas horas irá ser o intérprete de um filme que terá por designação O Herói do Mar. O cavaleiro garboso anda para cá e para lá, compenetrado no treino, sem suspeitar do engano. Trata-se pois de um capítulo que se desenrola entre o trágico e o burlesco, o pretensamente grandioso e o irónico. E Marie Christine-Barrault interpretava essa dualidade magnificamente. A Capela das Carmelitas estava suspensa, não se ouvia mais nada senão as palavras pronunciadas pela actriz. Na sua voz conseguia-se ouvir o mar, as ondas, o cavalo, a voz do antigo revolucionário agora actor da sua própria figura, as suas réplicas, a declaração do Cavaleiro El Campeador, herói de Abril, quando dizia que ele seria como Dom Rodrigo Díaz de Vivar, El Mio Cid, aquele cujo corpo já era um cadáver e ainda haveria de ganhar batalhas. Até que a Marie-Christine leu a última página, baixou a cabeça para receber as vénias, e ao som dos aplausos, agradeceu durante longos minutos.
Ninguém parecia querer abandonar o recinto. A actriz sorria de felicidade, e era justo, tinha sido perfeita. Dicção impecável, entoação ondulada entre lógica e emoção. Perfeitíssima. Nós duas, editora e autora, permanecíamos ao fundo, encostadas junto à porta. Finalmente, a sessão foi dada por encerrada. Tinha sido um momento alto. Mas nunca se mencionou o título do livro, nem a sua nacionalidade, nem o nome da autora, nem o nome da tradutora, nem o nome da casa editora. Nenhuma referência ou contextualização. No meio do alto cadeiral, tinha havido uma silhueta de mulher, dois lábios formosos, um texto. Quando finalmente começámos a caminhar pelas ruas de Toulouse, nenhuma de nós falava. Anne -Marie perguntou – “Diz-me, para nós, isto foi um momento de tristeza ou de alegria?” Eu respondi, de grande alegria, por certo.
Sim, era um momento de vitória, cumpria-se plenamente o que é pedido a um texto, que ele seja simplesmente um texto. Aquele capítulo tinha transmitido entusiasmo e arrebatamento às pessoas através da interpretação da actriz, o texto não precisava de mim, nem da minha identificação, nem da chancela da editora, nem de mais qualquer indicação explicativa de proveniência ou origem. Ninguém tinha ficado a saber que a figura de nome El Campeador era a transfiguração de Otelo Saraiva de Carvalho. Tratava-se simplesmente de um texto narrativo, um pedacinho mínimo das Mil e Uma Noites que os escritores dos nossos dias, no seu conjunto, continuam a escrever. Afinal, tinha sido um momento de perfeita harmonia. Rimo-nos muito da situação ao regressar ao hotel.
E eu pensei em Manuel Antunes, vi-o caminhar vindo ao meu encontro, encostado para o lado esquerdo, vergado sob o peso da sua pasta pendurada da mão direita, e ouvi ele voltar a dizer que Homero não terá sido Homero, mas o nome atribuído à junção de versos inventados ao longo de décadas e de séculos por aedos famintos, que só encontrariam na invenção de um pedacinho de história narrada a sua recompensa, e que a Literatura era uma longa frase sem fim que narrava o sonho da Humanidade inteira.
Ora a Humanidade ainda não acabou, por isso a nossa aventura continua intacta. Ou pelo contrário, e melhor dizendo, a Humanidade permanecerá intacta, sim, porque nós continuaremos a narrá-la com os nossos punhos humanos.
Peço perdão por ter utilizado demasiadas palavras. Mas precisei delas para dizer aos estudantes desta Universidade que desejo que cada um, no ramo de estudos que escolheu para compreender e refazer o mundo, encontre o seu Manuel Antunes, e o saiba actualizar em face da nova civilização em que irão viver.
Muito obrigada.
Lídia Jorge.