Caminhos que fingem avançar
Espiga
Bernardo Majer
Polvo
É o segundo livro de Bernardo Majer a solo e o primeiro com uma narrativa de maior fôlego. Depois de Estes Dias (Polvo), um conjunto de histórias independentes unidas por alguns temas comuns, o autor regressa com Espiga, a história de duas pessoas que se encontram, mas também a história de como os desencontros nos constroem.
Abel e Laura são os protagonistas desta Espiga. Encontram-se num festival literário, onde cada um se encontra para apresentar os seus respectivos livros, e o entendimento entre ambos é imediato. Entre a faísca e o flirt, os dois partilham conversas, interesses comuns, dúvidas e algum toque, mas as leis da progressão narrativa não ditam que a paixão e um relacionamento são necessariamente o passo seguinte. Na verdade, esta é uma narrativa aberta, pelo que não há como saber o que realmente acontece num futuro próximo ou distante, mas o que Bernardo Majer explora são as possibilidades, o que não se concretiza, os ses que nos vão definindo o percurso – independentemente de um dia passarem, ou não, a ser realidades experimentadas.
Num traço que já vai sendo reconhecível, aliando linha clara e uma tímida aproximação ao realismo, Majer faz progredir a narrativa em pranchas onde muita coisa acontece, mérito das vinhetas que se sucedem como numa série de fotogramas, focando-se em detalhes, gestos, espaços, mas sempre centradas nas personagens e no acesso possível aos seus pensamentos e às suas emoções. Como já acontecia em muitas histórias de Estes Dias, os protagonistas deste livro são jovens adultos com poucas certezas sobre os passos a dar nesse suposto início de vida para o qual o mundo parecia esperar responsabilidades bem traçadas e planos definidos. As suas incertezas, reveladas em expressões faciais que não acompanham o que dizem ou em gestos que ilustram o seu vaguear mental, estruturam-lhes os dias, parecendo ser simultaneamente motor e travão.
Numa estrutura bipartida, que começa por se focar em Abel para, depois do encontro entre os dois, mudar o foco para Laura, a narrativa é linear no que à cronologia diz respeito, mas descreve sobretudo um tempo parado, à semelhança das insónias que afectam as duas personagens. Tal como nas longas noites em que o sono não surge, ainda que as horas continuem a passar, também nestas vidas não parece surgir nada capaz de marcar uma mudança, um qualquer nó que seja recomeço, ponto de partida para outros dias. A essa quase atemporalidade não é alheio um contexto que facilmente reconhecemos como familiar: a precariedade laboral, a habitação impossível de pagar, a incerteza pouco optimista em relação ao futuro. Ainda assim, esta não é uma banda desenhada comprometida com esse contexto ou com a sua denúncia, mas antes uma narrativa que constata o mundo e nele faz desfilar personagens pouco consonantes com a vertigem dos dias, atravessadas por uma certa melancolia e pelo impulso de prosseguirem os seus próprios passos ao mesmo tempo que ignoram o sentido que terá essa caminhada em frente. Bernardo Majer volta a fazer da incerteza e da dúvida uma forma possível de questionar o mundo e os desígnios que parecemos atribuir-lhe. Não será compromisso, manifesto ou certeza, mas é certamente um modo de existir no qual nos revemos, mesmo quando fingimos ter os caminhos bem traçados.